terça-feira, 13 de novembro de 2012

Epístola a Filemon: um apelo à inclusão social


Por Jurgen Souza e Nilza Farias

Apesar de não vivermos mais em uma sociedade escravocrata, é possível perceber, ainda hoje, os resquícios do preconceito que permeia algumas das mais nítidas convenções sociais e, através de ações desumanas, conduz a uma vivência social excludente, com a qual até mesmo os que se dizem cristãos têm sido coniventes. Vale lembrar que a religiosidade, quando está amparada na equivocada ideia de que existem pessoas superiores e pessoas inferiores, pode desencadear a face mais nefasta do preconceito, pois segrega em nome de Deus e toma por base uma leitura deturpada das Escrituras Sagradas. O que se pretende aqui, porém, é demonstrar, através de um estudo do texto de Filemon 1:8-20, que a orientação bíblica, embora haja quem se apegue a algumas passagens descontextualizadas, é que devemos amar o próximo com uma intensidade que nos faça sempre colocar o ser humano em primeiro lugar e buscar a superação das convenções sociais, para anunciar com ações práticas que todos têm igual valor diante de Deus. Espera-se, com isso, que os cristãos, de maneira geral, possam refletir a respeito de suas posturas e práticas, procurando ajustar sua vivência social à mensagem transmitida por Jesus.
A epístola a Filemon, escrita pelo apóstolo Paulo entre o final da década de 50 d.C. e o início da década de 60 d.C., apesar de não condenar explicitamente o regime escravocrata, ataca as bases ideológicas legitimadoras da escravidão por meio de uma orientação que era válida para Filemon ou qualquer pessoa que abraçasse o cristianismo. Ao contrário do que pensam os ainda hoje defensores da prática escravagista, a epístola a Filemon não se constitui como uma evidência da apologia bíblica à escravidão, já que os princípios cristãos mencionados nela diferem do pensamento de superioridade típico do regime escravocrata e apontam para a necessidade de demonstrarmos amor por meio das nossas ações diárias a todos indistintamente, inclusive àqueles que nos servem. Ressalta-se que, naquela época, boa parte dos habitantes da região de Colossos, onde residia o destinatário da carta, era composta por escravos e, por isso mesmo, havia leis específicas que procuravam dar conta das questões que envolvessem essa parcela da população. Não se saiba com exatidão o que motivou a fuga do escravo Onésimo, mas era fato que a lei romana dava ao escravo fugido a possibilidade de se refugiar em um altar religioso, seja em espaço público ou em uma casa particular, sendo que a pessoa responsável pelo altar deveria agir, então, como um intermediário em favor do escravo, quando o re-encaminhasse ao seu senhor. É possível, portanto, que Onésimo tenha se aproximado de Paulo na prisão por conta, inicialmente, dessa prerrogativa da lei, mas acabou se convertendo ao cristianismo através da pregação do apóstolo.
O fato de “Onésimo” significar “útil ou valoroso” e “Filemon” significar “amigo ou amoroso” já parece prenunciar aquilo que o conteúdo da carta revelará: o amor ao próximo deve superar as convenções sociais para, com foco no ser humano, anunciar que todos têm igual valor diante de Deus. A proposta da carta, portanto, está centrada no princípio cristão de que o ser humano deve ser priorizado, ainda que em detrimento das instituições e dos contratos sociais. Nota-se logo de início que, apesar de Paulo ser respeitado por Filemon como uma importante autoridade eclesiástica, as palavras do apóstolo possuem um tom de súplica e apelam à sensibilidade cristã de Filemon, conforme se lê em “Embora eu tenha plena liberdade em Cristo para te ordenar o que deves fazer, prefiro pedir-te confiado no teu amor” (v 8- 9a). Isso se confirma quando, mais adiante, Paulo deixa bem claro que o fato de ter escolhido pedir ao invés ordenar não retira sua autoridade sobre o destinatário da carta, mas ressalta que, para fazê-lo atender a um pedido tão despropositado numa sociedade escravocrata como aquela, era necessário evocar o amor cristão. Assim, o trecho “E se ele te causou algum prejuízo ou te deve alguma coisa, lança-o na minha conta. Eu, Paulo, escrevo isso de próprio punho; eu o pagarei, para não mencionar que tu me deves a ti mesmo.” (v. 18-19), que parece ser um arroubo de arrogância de Paulo, é, na verdade, uma explicação de que ele abdicou de falar como autoridade eclesiástica para falar como irmão em Cristo.
Ao interceder por Onésimo, porém, Paulo relata que o conheceu na prisão, menciona o fato de ele ter se convertido e faz questão de, através de um trocadilho com o significado do nome do escravo, demonstrar que ele agora tem muito mais valor, conforme se observa no trecho “Eu, Paulo, já velho e agora também prisioneiro de Cristo Jesus, venho interceder por meu filho Onésimo, que gerei quando estava na prisão. Anteriormente, ele te foi inútil, mas agora é muito útil para ti e para mim.” (v. 9b-11). Cumprindo, então, o que determinava a lei romana acerca do escravo fugido, o apóstolo Paulo re-encaminha Onésimo a Filemon, destacando a importância que ele teve para seu ministério enquanto estava preso, como se pode ler em “Eu o envio de volta a ti, como se estivesse enviando o meu próprio coração. Gostaria de mantê-lo comigo, para que em teu lugar me servisse na prisão por amor do evangelho, mas eu não quis fazer nada sem o teu consentimento, para que a tua bondade não fosse forçada, mas sim espontânea.” (v. 12-14). 
Contudo, o ponto-chave do texto em análise é, de fato, o momento em que o apóstolo pede a Filemon que receba Onésimo de volta não mais como escravo, mas como um irmão amado que tem tanto valor quanto ele, Paulo, ou o próprio Filemon, conforme se observa na leitura do trecho “Pode ser que ele tenha se separado de ti por algum tempo, para que pudesses reavê-lo para sempre, não mais como escravo; aliás, melhor do que escravo, como irmão amado, particularmente por mim, e ainda mais por ti, tanto humanamente como também no Senhor.” (v. 15-16). Dessa forma, Paulo reitera, mais uma vez, que a vivência do evangelho de Cristo não condiz com o errôneo pensamento de que existem pessoas superiores e pessoas inferiores, mas orienta a uma postura de igualdade e respeito mútuo entre quaisquer pessoas, confirmando o que já havia dito aos crentes das igrejas cristãs na Galácia ao afirmar que “Todos os que em Cristo fostes batizados, de Cristo vos revestistes. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” (Gálatas 3:27-28). Por fim, sabendo do respeito e da consideração que Filemon nutria por ele, o apóstolo pede que Onésimo seja recebido e tratado como se fosse o próprio Paulo, afirmando que esse favor lhe seria de tamanha importância que lhe traria mais ânimo ao coração, como se pode verificar em “Assim, se me consideras um irmão na fé, recebe-o como se recebesses a mim mesmo. [...] Sim, irmão, gostaria de ser beneficiado por ti no Senhor; dê ânimo ao meu coração em Cristo.” (v. 17 e 20).
Inúmeros cristãos interpretaram, ao longo dos anos, o texto de Filemon 1:8-20 como uma autorização para a segregação social e até mesmo para a escravização dos segregados, compreendendo que Paulo não mencionou uma só palavra em favor da libertação de Onésimo, orientando somente que Filemon recebesse de volta o escravo fugitivo. Embora haja quem faça ainda hoje uma leitura excludente desse texto, não se pode negar, porém, que a proposta de se tratar um homem socialmente inferiorizado como igual derruba qualquer pensamento escravagista, uma vez que a escravidão está embasada exatamente na ideia de superioridade de um determinado grupo social sobre outro(s). Por essa ótica, o discurso antiescravocrata de Paulo, mesmo estando nas entrelinhas, demonstra que, na condição de escravo, Onésimo foi inútil a Filemon, deixando transparecer que, para o apóstolo, a escravidão inutiliza o ser humano, o qual só tem valor de fato quando goza de liberdade social e espiritual. Nota-se que Paulo não orienta o retorno de Onésimo à casa de Filemon como um escravo, mas como um irmão tão valoroso quanto o próprio apóstolo ou quanto o próprio Filemon.
Mesmo não estando hoje sob o fardo da escravidão, precisamos nos esforçar enquanto cristãos para amar o próximo de uma maneira que transcenda às convenções sociais e revele ao mundo a graça de Deus através das nossas atitudes, já que foi essa a orientação de Jesus Cristo àqueles que se dizem seus discípulos. Precisamos buscar uma vivência religiosa capaz de subverter as convenções sociais e, de maneira igualitária, valorizar todas as pessoas, independente da suas raízes étnicas ou da sua condição socioeconômica. Uma postura como essa requer que escolhamos, de forma bem clara, que tipo de evangelho queremos proclamar ao mundo: um evangelho excludente e compromissado tão somente com a manutenção de uma estrutura social que beneficia o grupo hegemônico, legitimando a opressão e a segregação de quaisquer pessoas que não fazem parte dele, ou um evangelho includente e compromissado com os valores transmitidos por Jesus Cristo, possibilitando a compreensão de que todas as pessoas indistintamente devem ser tratadas com igual respeito. De maneira muito sábia, o apóstolo Paulo orientou Filemon naquele momento, e indiretamente nos orienta ainda hoje, a proclamar um evangelho includente, capaz de conduzir a um posicionamento contrário às práticas sociais mais comumente aceitas, a fim de priorizar a dignidade humana ou, em alguns casos mais extremos, a própria vida humana.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Amordaçadas em nome de Deus


Por Jurgen Souza

Com o amparo da compreensão literal de diversos trechos da bíblia, construiu-se em nossa sociedade uma imagem da mulher como um ser de segunda categoria e, portanto, inferior ao homem, a quem ela deve ser silenciosamente submissa. Esse pensamento preconceituoso, que remonta aos primórdios da humanidade, tem sido usado ainda hoje para legitimar a visão de que a mulher, considerada mais frágil, seria incapaz de assumir papéis de liderança, inclusive nas igrejas. Essa vergonhosa postura dogmática e excludente das religiões cristãs fez com que a liderança eclesiástica sempre estivesse associada ao universo masculino, minimizando o importante papel da mulher nessa esfera da sociedade. Instigado por essa triste realidade, o presente texto pretende apresentar uma leitura inclusiva de I Timóteo 2:9-15, o qual orienta que as mulheres devem ficar em silêncio na igreja e, por isso mesmo, tem sido utilizado entre os cristãos para negar a biblicidade da liderança feminina.
Antes de mais nada, porém, vale lembrar que as cartas pastorais (I e II Timóteo e Tito) apresentam, de acordo com os teólogos contemporâneos, problemas com relação à autenticidade e à autoria que precisam ser levados em consideração. Mesmo reconhecendo nelas alguns traços identitários da tradição paulina e não desmerecendo sua importância para o cristianismo, teólogos como Norbert Brox e Günther Bornkamm acreditam ser mais provável que elas tenham sido escritas por redatores posteriores a Paulo, apesar de seguirem o modelo epistolar paulino e serem assinadas com o nome do apóstolo, já que seu estilo, seu vocabulário e seu conteúdo diferem das cartas paulinas consideradas autênticas (Romanos, Gálatas, I e II Coríntios, I Tessalonicenses, Filipenses e Filemon). No caso de I Timóteo, é muito provável que tenha sido enviada por algum discípulo de Paulo ao jovem pastor da comunidade de Éfeso no final do primeiro século, dando-lhe algumas orientações acerca de assuntos práticos da vivência religiosa dos cristãos daquele lugar e enfatizando a necessidade de se manter viva a tradição do evangelho de Jesus Cristo.
Uma das orientações mais polêmicas da primeira epístola a Timóteo, e que parece divergir do conteúdo das cartas genuinamente paulinas, diz respeito à postura que deveria ser assumida pela mulher na adoração pública, a qual inclui a recomendação de que a mulher deveria ficar em silêncio na igreja. Teólogos como Wayne Meeks, Marga Ströher e Cristina Conti defendem que, em I Timóteo 2:9-15, o trecho contido entre o versículo 11 e o 15a apresenta um conteúdo que destoa do todo da carta, demonstrando a possível existência de uma interpolação posterior à escrita original do texto, a qual modificaria substancialmente a essência da mensagem original. Essa suspeita parece ter fundamento, já que, retirando-se o trecho supostamente interpolado, percebemos que a fluidez textual é mantida e não há comprometimento da estrutura argumentativa, assim como, se analisarmos o trecho retirado separadamente, percebemos que ele possui fluidez textual e estrutura argumentativa próprias. Por conta disso, então, I Timóteo 2:9, 10, 15b e I Timóteo 2:11-15a não podem ser considerados como um único texto, evidenciando que a parte interpolada foi adicionada depois com algum propósito diferente da parte originalmente escrita.
Os historiadores bíblicos José Alonso Díaz e Henri Delafosse afirmam que tal interpolação, bem como a interpolação contida em I Coríntios 14:34-35, teria sido feita no final do século II, com o intuito de combater as ideias e as práticas religiosas montanistas. O montanismo era um movimento cristão considerado herético que surgiu na segunda metade do século II, na região da Frígia, na Ásia Menor, sendo caracterizado por uma volta ao profetismo e por uma mensagem escatológica. O que mais preocupava os cristãos tradicionais, no entanto, era o fato de os montanistas considerarem a mulher como detentora de um grande privilégio diante de Deus, por ter sido a primeira a comer do fruto da árvore do conhecimento, fato que a colocava em posição de destaque nesse grupo e permitia que ela pudesse exercer cargos eclesiásticos relevantes. Não é à toa, portanto, que o trecho interpolado oriente a mulher a “aprender em silêncio, com toda submissão” (v. 11), advertindo ainda que “não ensine, nem exerça autoridade sobre o homem” (v. 12) e reiterando enfaticamente que “esteja em silêncio” (v. 12), utilizando como principal argumento o errôneo pensamento de que o pecado teria sido introduzido na humanidade por meio da mulher, conforme se observa pelo trecho “Adão não foi enganado, mas a mulher é que foi enganada e caiu em transgressão” (v.14). Não devemos nos esquecer, porém, de que a leitura de Gênesis 3:1-24 demonstra claramente que homem e mulher foram igualmente responsáveis pelo surgimento do pecado, a ponto de suas consequências atingirem a ambos.
Não é o fato de o texto de I Timóteo 2:9-15 não ter sido escrito exatamente por Paulo ou ter sido alterado em relação à escrita original que fará, de maneira alguma, com que ele deixe de ser relevante, enquanto Palavra de Deus, para os cristãos contemporâneos. Contudo, é imprescindível que nos concentremos nas lições de vida transmitidas pelo trecho original do texto, sem deixar de explicar, é claro, que as afirmações do trecho interpolado precisam ser entendidas a partir do contexto em que foi escrito. A respeito do trecho original, expressão adverbial “Do mesmo modo” (v. 9), que aparece logo no início do texto, aponta para um contraste entre o que vai ser dito acerca da postura da mulher e o que havia sido dito antes acerca da postura do homem na adoração pública. O requisito exigido do homem para a adoração pública era uma vida reta diante de Deus, conforme se observa pelo trecho “mãos santas, sem ódio nem discórdia” (v.8), sendo exigida igual retidão também por parte da mulher, a qual não agradaria a Deus pela aparência física, evidenciada pelos termos “tranças”, “ouro”, “pérolas” e “vestidos caríssimos” (v. 9), mas pela prática da benevolência que era conveniente às mulheres cristãs, como se pode perceber pelo trecho “se vistam de boas obras” (v.10). No final, a orientação dada à mulher é que “permaneça com domínio próprio na fé, no amor e na santificação” (v. 15b), evidenciando a necessidade de uma vida de retidão que já havia sido exigida também do homem.
Para que, nos dias de hoje, possamos fazer uma leitura de I Timóteo 2:9-15 coerente e fiel aos ensinamentos de Jesus, não devemos nos esquecer de que a restrição à participação da mulher nas atividades eclesiásticas não é uma orientação comum às comunidades paulinas, mas é fruto de um contexto específico e, por isso mesmo, não deve ser entendida como um princípio bíblico acerca da figura feminina dentro da igreja. Paulo, ao contrário, chega a recomendar a irmã Febe ao ministério da igreja em Roma, além de fazer menção a outras mulheres relevantes naquela igreja (Prisca ou Priscila, Maria, Júnia, Trifena, Trifosa, Pérside, a mãe de Rufo, Júlia e a irmã de Nereu), conforme lemos em Romanos 16:1-16. No texto de I Timóteo 2:9-15, a mensagem principal, comum a homens e mulheres, é que devemos ter uma vida reta e digna aos olhos humanos para que possamos adorar a Deus publicamente, já que são as nossas atitudes, e não a nossa aparência, que dão testemunho da nossa fé. Essa compreensão, longe de negar a relevância do texto enquanto Palavra de Deus, pode nos conduzir a uma vivência religiosa mais includente e, consequentemente, mais anunciadora do evangelho transformador de Jesus Cristo.

sábado, 2 de junho de 2012

A religião cristã a serviço de Mamom



Por Jurgen Souza


Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom. 
(Mateus 6:24)





Na tradição cultural do povo judeu, de quem o cristianismo herdou as bases religiosas, o termo Mamom (uma transliteração da palavra hebraica que significaria dinheiro ou riqueza) faz referência a uma divindade personificada nos bens materiais. A mensagem trazida por Jesus e que deveria ser norteadora da vivência religiosa do cristianismo adverte claramente que quem é controlado pelo desejo de possuir, numa evidente adoração a Mamom, não pode jamais ser considerado um servo de Deus. Todavia, na contramão dos ensinamentos de Cristo, muitas religiões cristãs da sociedade contemporânea, especialmente as do segmento evangélico, têm assumido posturas ideológicas legitimadoras do neoliberalismo econômico, transformando a fé em mercadoria e fazendo de Mamom o seu verdadeiro deus.
Ao contrário, porém, do que se pode imaginar, essa relação entre o protestantismo e o capitalismo não é recente, mas remonta aos primórdios do movimento protestante, o qual sempre defendeu que uma sociedade que refletisse a glória de Deus estaria diretamente relacionada à dedicação incondicional ao trabalho e à busca pela aquisição de bens. Segundo Max Weber, o espírito capitalista se fortaleceu e se propagou rapidamente amparado nesse pensamento protestante, o qual justificaria a busca desenfreada desse novo grupo de cristãos pela lucratividade e pelo acúmulo de bens, já que o não agir dessa maneira implicaria em desagradar aos planos do próprio Deus. Embora, porém, o capitalismo tenha se constituído a partir da herança da ideologia protestante e das relações sociais estabelecidas por ela, a própria religião acabou se tornando uma mercadoria e servindo aos interesses das elites socioeconômicas, permitindo compreender que a salvação do indivíduo estaria condicionada ao trabalho e à riqueza criada por ele. Karl Marx afirma que esse processo de mercadologização da religião ocorre quando a força de trabalho do indivíduo e a riqueza que ele pode produzir passam a ser exigidas como requisitos para adquirir a salvação oferecida através religião.
Ainda que esse processo de mercadologização da religião por parte do segmento evangélico tenha mesmo raízes históricas, certamente foi na sociedade contemporânea que a transformação da vivência religiosa em mercadoria do sistema capitalista acabou ganhando impulso, já que as religiões ditas protestantes, especialmente as pentecostais e neopentecostais, passaram a assumir posturas ideológicas cada vez mais legitimadoras do neoliberalismo econômico. Ao relacionar a vivência religiosa bem sucedida à realização das aspirações materiais, através da chamada “teologia da prosperidade”, muitas igrejas evangélicas acabam transmitindo a ideia de que, assim como numa relação contratual qualquer, a pessoa que assume o compromisso financeiro por meio dos dízimos e das ofertas pode exigir que Deus a abençoe com aquilo que ela deseja. De acordo com Pierre Bourdieu, uma nova vivência religiosa surge, portanto, nesses tempos pós-modernos, tornando a lógica interna da economia de mercado visível no interior do campo religioso e transformando a relação entre fiéis e igrejas numa relação clientelista, alimentada por uma variedade de produtos e serviços atraentes aos milhões de consumidores da fé que anseiam pela tão propagada ascensão financeira instantânea.
Esse nítido retorno à compra de indulgências, princípio herético veementemente combatido por Lutero nos primórdios do movimento protestante, tem agora o auxílio das estratégias de marketing típicas da mídia televisiva e, com tal veiculação rápida e exponencial, o discurso religioso impregnado de capitalismo tem se tornado uma poderosa ferramenta de dominação ideológica, fazendo com que uma multidão de pessoas, alienada por uma vivência religiosa desprovida de qualquer senso crítico, deixe-se dominar pelos líderes religiosos e pelas instituições eclesiásticas que assumem tal postura. Os testemunhos emocionados transmitidos pela televisão mostram ao público geral os consumidores satisfeitos com os produtos adquiridos, aguçando outros clientes em potencial com as mais variadas ofertas de uma solução imediata que satisfaça suas necessidades e sempre vinculando tais ofertas a um “pagamento” financeiro. Não é à toa, portanto, que essas instituições eclesiásticas apresentem um crescimento vertiginoso no número de adeptos e que, na ânsia por alcançar uma clientela cada vez maior, invistam muito dinheiro para ter mais espaço na mídia televisiva, uma vez que a visibilidade midiática permite uma exposição ainda maior dos produtos oferecidos e atinge um mercado consumidor muito mais abrangente.
De acordo com Peter Berger, quando as pessoas consideram esse discurso religioso impregnado de interesses mercadológicos como a verdade absoluta, refutando qualquer outro discurso que dela divirja, isso demonstra que elas passaram pelo processo de alienação. Justamente por conta desse processo de alienação, acabaram se tornando mais vulneráveis ao poder de dominação dos muitos líderes religiosos mal intencionados, sendo induzidos até a fazer empréstimos bancários para que, por meio das campanhas e dos propósitos constantes, possam ter acesso às bênçãos de Deus. Assim, dominadas por essa ideologia perversa, inúmeras são as pessoas que não medem esforços para participar dos propósitos financeiros, apesar da continuidade das muitas mazelas sociais com as quais convivem diariamente, e sequer questionam o fato de seus líderes religiosos construírem um verdadeiro império enquanto muitos dos que se amontoam nos templos mal conseguem pagar as próprias contas.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

O pronome que se perdeu


Mestrado na Bahia relaciona apagamento dos clíticos à influência africana[1]

Por Marcelo Módolo e Henrique Braga[2]


         Eles “casaro” esse ano que “cabô”. Sem contextualização, essa frase poderia soar ambígua. “Eles” podem ter casado um com o outro (“Eles, Sérgio e Graziela, casaram [um com o outro]”). É plausível ainda interpretar que a frase se refira à formação de diferentes casais (“Eles, Maurício e Aníbal, casaram [cada um com sua respectiva alma gêmea]”). Com imaginação, seria possível cogitar até que se trata de enunciado em que um sujeito casa terceiros (não é absurdo dizer que “Eles[, os padres,] casaram [muitos noivos apaixonados]. Um defensor do português tido como padrão protestaria, alegando que a inserção do pronome “reflexivo” resolve a questão. “Eles se casaram nesse ano que acabou” e pronto!
         Jurgen Alves de Souza, em inédita dissertação de mestrado, alçou voo mais alto: o que levou ao apagamento desse pronome em certas variedades do português brasileiro (PB)? Já no título do trabalho, o linguista toma partido: em “As estruturas reflexivas no português afro-brasileiro” (grifo dos autores), sugere que, ao menos em certas variedades da língua, pode ter havido o fenômeno da “crioulização”.
Para os leigos em terminologia linguística, um alerta: o termo “crioulização” se refere a fenômeno linguístico e social: imagine a situação de contato entre culturas cujas línguas sejam ininteligíveis (tal como, por causa da sanha expansionista europeia, ocorreu na América, na África, na Ásia e na Oceania); para a comunicação entre falantes de diferentes idiomas ser possível, emerge um pidgin, um novo código, ainda rudimentar; passados muitos anos, o código – já dotado de maior complexidade – passa a ser a língua materna legada ao grupo social formado a partir daquele contato entre culturas. Todo esse processo se resume no signo “crioulização”.
Jurgen Souza se insere na tradição dos que admitem a hipótese de certos fenômenos do PB serem decorrentes de contextos de crioulização. Traduzindo: embora não argumente sobre o PB ser típica língua crioula, postula que certos usos não referendados podem, em certas variedades, ser resquícios de contato linguístico inicialmente rudimentar, entre colonizador e escravo africano. Um cético perguntaria: mas como comprovar esse contato tantos anos depois do período escravagista?
Souza se valeu de entrevistas em comunidades compostas por descendentes de escravos (Sapé, Helvécia, Rio de Contas e Cinzento). Essas comunidades têm a peculiaridade de, até a gravação das entrevistas, manterem considerável grau de isolamento, configurando “ilhas linguísticas” (a fala desses grupos está documentada pelo Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia, www.vertentes.ufba.br, coordenado por Dante Lucchesi, da UFBA).
O tratamento dado por Souza a seus dados, ao estudar o uso dos reflexivos, nasce da visão por ele assumida sobre línguas em contato: num contexto em que um grupo dominado aprende a língua do dominador (“transmissão irregular”), são eliminados elementos gramaticais mais abstratos, que dispunham de menor funcionalidade comunicativa e carga semântica mais tênue.
É esse o princípio de que Souza se vale para analisar construções como “Aí depois ele Ø mudô daí e foi pra Conquista” (em vez de “se mudou”: o Ø sinaliza campo não preenchido pelo falante) e “Se ele Ø enfezá, ele não sai não” (em vez de “se enfezar”), casos nos quais a falta do pronome não prejudica a comunicação. Para o analista, embora não seja categórico esse apagamento do pronome nas comunidades estudadas, os fatores que favorecem o não uso do reflexivo parecem fortalecer a hipótese que relaciona apagamento a processo de transmissão irregular.
Detido sobre condicionantes sociais que levassem a maior ou menor apagamento dos pronomes, Souza considerou o sexo do falante, a possibilidade de ele ter vivido seis meses ou mais fora da comunidade e grau de isolamento dela (entre as analisadas). Partiu-se do princípio: se o apagamento do clítico é marca de um ancestral crioulo dessas variedades afro-brasileiras, quanto menos exposto a variedades que realizassem o clítico, maior a chance de o falante manter esse traço da sua gramática ancestral.
Os resultados: na fala de homens, a probabilidade de se realizar o clítico é 0,61, mas cai para 0,42 na de mulheres (escala de 0 a 1,0). Dado relevante se considerarmos que, na estrutura das comunidades, a dedicação ao lar limita o convívio das mulheres com pessoas de culturas diferentes.
Os dados voltam a favorecer a hipótese de Souza na fala dos que viveram fora da comunidade (0,59 a chance de o pronome aparecer) ante a dos que permaneceram nela (0,44): outra vez o isolamento parece sinônimo de ausência do pronome.
A cartada final para defender que houve transmissão irregular do idioma: entre as comunidades estudadas, as mais isoladas usam menos o pronome. Vejamos os extremos: Sapé se distingue das demais pela proximidade com Salvador. Cinzento, descendente de quilombo e localizada num terreno de difícil acesso, chegou a passar longo período sem contato com outras comunidades. Na primeira a probabilidade de um indivíduo usar o clítico é alta: 0,72. Na segunda, bastante baixa: 0,33.
De posse desses resultados comparativos, Jurgen Alves de Souza ousa reconstituir parte da história linguística desse português “afro e brasileiro”. Num primeiro momento, a transmissão irregular levou ao desaparecimento dos elementos “dispensáveis” ao conteúdo da mensagem naquela situação comunicativa emergencial. Hoje, os falantes com acesso aos padrões culturais e linguísticos externos buscam por certas “sofisticações gramaticais”, que seus antepassados, sujeitados à dominação dos senhores, não puderam conquistar.
É a história da língua se confundindo com a história de seu povo.


[1] Reprodução, na íntegra, do texto publicado na Revista Língua Portuguesa, edição de maio/2012, a respeito da pesquisa acerca dos pronomes reflexivos realizada por Jurgen Souza durante o mestrado.

[2] Marcelo Módolo é professor doutor e pesquisador da área de Filologia e Língua Portuguesa da USP. Henrique Braga é doutorando na área de Filologia e Língua Portuguesa da USP, professor e autor de materiais didáticos do curso Anglo Vestibulares.

sábado, 7 de abril de 2012

O nada fácil desafio de continuar vivendo a missão


Por Jurgen Souza

         Mesmo que a maioria dos cristãos, especialmente os do segmento evangélico, afirmem que o foco desse período que nos acostumamos a chamar de semana santa não deve ser a morte e sim a ressurreição de Jesus, relembrar sua crucificação nos inspira a refletir, ainda nos dias de hoje, sobre as implicações de sua morte na continuidade da missão para a qual ele convocou seus discípulos. Embora tivessem sido advertidos diversas vezes pelo próprio Jesus a respeito de sua morte, não se pode negar que os discípulos foram acometidos, nos primeiros momentos, por um desânimo que comprometia os rumos da proclamação da mensagem transmitida pelo mestre. Engana-se, porém, quem imagina que, no limiar século XXI, os discípulos de Jesus não se sintam, vez ou outra, desnorteados em relação à missão, ainda que por motivos diferentes dos de outrora. Em virtude dessa realidade, a reflexão que aqui se apresenta pretende, a partir da experiência vivenciada por Pedro, pensar a respeito de alguns aspectos que precisam ser considerados nesse nada fácil desafio de dar continuidade à missão.
         Muita gente parece perder o rumo no decorrer da caminhada como discípulo porque não compreende com clareza a missão para a qual foi chamado, fazendo-se necessário, antes de qualquer coisa, saber exatamente o motivo pelo qual Jesus comissionou seus discípulos. Ao contrário dos religiosos da época, Jesus pretendia que seus discípulos levassem uma mensagem que, de fato, transformasse a vida das pessoas (João 10:10), por meio de palavras e principalmente de ações. Observe que, quando Pedro e seus amigos foram chamados por Jesus para largar as redes e tornarem-se “pescadores de homens” (Marcos 1:16-20), estavam sendo convidados, na verdade, para se disporem como elementos de transformação da realidade social na qual estavam inseridos, procurando vivenciar, na relação com quaisquer pessoas à sua volta, os ensinamentos de amor e respeito aos outros transmitidos pelo mestre (Mateus 5:43-48 e João 13:34-35). Todavia, para a realização de uma missão com essa profundidade, os discípulos precisaram de um período considerável de aprendizado ao lado do mestre (João 15:15 e João 17:6-8), já que, numa sociedade por demais religiosa como aquela, a vivência dessa valorização do ser humano por parte de quem realiza a missão precisaria mesmo ser aprendida.
         É importante também ter em mente que a missão para a qual os discípulos foram comissionados precisaria ir além do período em que Jesus estava fisicamente com eles, já que tomava por base princípios que transcendiam a temporalidade para se perpetuar como uma forma de viver a vida e se relacionar com as pessoas à sua volta. Apesar de terem sido alertados por Jesus a respeito da sua morte (Marcos 8:31, Lucas 9: 21-22 e João 13:33) e da necessidade de que a missão tivesse continuidade (João 15:16), os discípulos parecem não ter compreendido tão claramente o aspecto atemporal da missão, a ponto de abandoná-la, retornando, pouco depois de passado o sofrimento pela morte e o espanto pela ressurreição, às atividades que desenvolviam antes de terem sido chamados pelo mestre (João 21:1-3). Estavam tão desnorteados que se esqueceram de que Jesus prometera que não os abandonaria (João 14:18) e que, para conduzi-los nessa nova etapa da missão, enviaria o Espírito Santo (João 14:25-26), entretanto nada disso parecia fazer mais sentido e, tomados pelo desânimo e pelo comodismo, preferiram viver como se não tivessem aprendido coisa alguma durante o período em que conviveram com Jesus.
         Para que a missão à qual Jesus comissionou seus discípulos possa ter continuidade, é imprescindível que, mesmo tendo passado por momentos de desânimo e comodismo, eles estejam sensíveis ao chamado do mestre para retornarem à missão. Pedro e seus amigos, desnorteados depois da morte de Jesus, abdicaram da missão para a qual o mestre os havia chamado e voltaram a ser meros pescadores, até que, depois de uma pescaria mal sucedida no mar de Tiberíades (João 21:3b), aqueles homens experientes no ofício da pesca tiveram a oportunidade de perceber que, se a missão precisava ser continuada e eles haviam sido escolhidos para isso, não adiantaria, então, volver à pesca (João 21:4-13). Esse novo encontro com Jesus oportuniza, no entanto, a possibilidade de um retorno à missão, verbalizada a Pedro (João 21:15-17) – que parecia exercer alguma liderança sobre os demais – e estendida a todos os outros discípulos. Pedro, ainda que temeroso, demonstra sensibilidade ao chamado de retorno à missão, mas Jesus o orienta a respeito de algumas prerrogativas para que a continuidade da missão seja bem sucedida. Seria necessário ao discípulo, em primeiro lugar, estar disposto a mudar definitivamente sua trajetória de vida por amor aos ensinamentos de Jesus (João 21:15a), assumindo-se de uma vez por todas como “pescador de homens”. Além disso, faz-se necessário que ele se posicione como um cuidador sábio daqueles serão atingidos com a mensagem de Jesus, procurando respeitar os diferentes processos de amadurecimento de cada um no transcorrer da missão (João 21:15b-17).
         Portanto, ainda que estejamos desanimados, acomodados ou mesmo desnorteados no desenvolvimento da missão para a qual Jesus nos comissionou, ele próprio nos chama de volta à proclamação, com ações e palavras, de uma mensagem capaz de transformar a vida das pessoas ao nosso redor, auxiliando na modificação da sociedade na qual estamos inseridos. À medida que Jesus nos reintegra como discípulos no projeto de continuidade da missão, ele vai, então, nos orientando a respeito daquilo que precisamos repensar em nós para que isso de fato ocorra. Cabe, porém, a nós, como seus discípulos e discípulas, estarmos sensíveis às suas orientações e nos posicionarmos verdadeiramente como elementos de transformação da realidade à nossa volta, não agindo tão somente como religiosos.

sábado, 17 de março de 2012

Pós-modernidade, religiosidade midiática e identidade religiosa dos batistas brasileiros





                                 

A sociedade contemporânea tem experimentado momentos de ruptura que modificaram sobremaneira as referências culturais de classe, de gênero, de sexualidade, de etnia e, como não poderia deixar de ser, de religião. De acordo com o antropólogo Stuart Hall, o indivíduo, nesses tempos de pós-modernidade, não possui mais uma identidade fixa, passando a experimentar, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, contínuos deslocamentos identitários, marcados pelas diversas transformações ocorridas ao longo do tempo no que tange ao sentimento de pertença a determinada cultura étnica, linguística, religiosa ou nacional. Inicialmente, o conceito de identidade estava relacionado única e exclusivamente ao indivíduo, sendo, por isso mesmo, imutável, desde o nascimento até a morte. Mais tarde, porém, a identidade passou a ser compreendida pela aglutinação das características do indivíduo e do mundo cultural que ele habita, tornando-os unificados e previsíveis. Por fim, a concepção de identidade tornou-se mais flexível, formada e transformada continuamente de acordo com os sistemas culturais que rodeiam o indivíduo, o qual assume diferentes identidades nos diferentes momentos da relação com os outros. Em meio a todas essas transformações, a vivência da religiosidade, ainda que os religiosos mais ingênuos insistam em negar, não passou incólume.

Esse processo de mudança pelo qual o próprio conceito de identidade passou é determinante para se compreender a formação da identidade religiosa de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos na sociedade contemporânea. A identidade religiosa, outrora bem definida e estável, tornou-se fragmentada, variável e, por vezes, contraditória, contando com a importante contribuição da mídia – especialmente a televisiva –, que permitiu o acesso mais rápido e mais fácil a diferentes vivências religiosas e propiciou inúmeras mudanças nas práticas religiosas do sujeito pós-moderno.  Iniciada nos Estados Unidos a partir da década de 70, a midiatização da religião acabou alcançando também diversos países da América Latina, entre eles o Brasil, com uma assustadora presença nos meios de comunicação em massa. Se a cultura midiática pode possibilitar ao indivíduo uma mudança identitária, não é à toa que muitas religiões venham cada vez mais se apropriando dela como ferramenta para disseminar uma determinada identidade religiosa, multiplicando-se a cada dia os pregadores brasileiros que se utilizam da mídia e já contam hoje com suas próprias emissoras de rádio e televisão, páginas na internet e ainda ocupam um tempo considerável na programação de outras emissoras. Assim, as pessoas passaram a ser constantemente bombardeadas por diversos pregadores da mídia televisiva, tendo contato diário, ao simples clique do botão, com um mar de posicionamentos teológicos que as atingem sob a forma de um tsunami invisível e implacável.

Com o intuito de analisar a presença dos diversos grupos religiosos nos meios de comunicação em massa durante as décadas de 70 e 80, surgiu nos Estados Unidos o conceito de igreja eletrônica. Por protagonizarem escândalos que iam desde a sonegação do imposto de renda ao envolvimento com prostitutas, os televangelistas norte-americanos perderam espaço na mídia televisiva brasileira no final década de 80, abrindo caminho para o surgimento de um grande número de pregadores brasileiros que viriam a ocupar, mais tarde, essa lacuna deixada por eles, principalmente após o crescimento vertiginoso do movimento neopentecostal, a partir da década de 90.  Se antes a midiatização da religião apenas remetia ao espaço religioso tradicional, foi acontecendo paulatinamente a transferência do púlpito para o ambiente midiático, instaurando, segundo a pesquisadora Rosa Pignatari, novas formas de religiosidade, as quais buscam suporte muito mais nas estratégias de marketing típicas da mídia do que na estrutura tradicional da práxis religiosa. De acordo com a pesquisadora Magali Cunha, em virtude do surgimento dessas vivências religiosas mais inovadoras que a mídia proporcionou, foi desenvolvido, no final da década de 90, o conceito de religiosidade midiática, o qual aponta para uma superexposição do sujeito pós-moderno, ainda que de forma involuntária, aos diversos discursos religiosos que aparecem, sedutores e apelativos, ao simples clique do botão.

      No Brasil, segundo o pesquisador Sérgio Barbosa, os pregadores pentecostais, representados principalmente pelos líderes dos muitos ministérios da Igreja Assembleia de Deus, foram os primeiros a se utilizar da religiosidade midiática, apregoando em mídia nacional o batismo no Espírito Santo, a busca da santificação e a ética restritiva de costumes. Mais tarde, porém, os diversos pregadores neopentecostais, prenunciados por R.R Soares e Edir Macedo, passaram a se utilizar da religiosidade midiática para divulgar os eventos de cura, de exorcismo e de prosperidade financeira, sem enfatizar, no entanto, a necessidade de restrições de cunho moral e cultural para se alcançar a bênção divina. Apesar de ser marcada pela presença majoritária do pentecostalismo e do neopentecostalismo, a religiosidade midiática pode influenciar, e tem influenciado, a vivência religiosa de outros grupos denominacionais brasileiros, ainda que tenham bases doutrinárias bastante diferentes das veiculadas pelos principais pregadores de mídia. Mesmo uma denominação evangélica com raízes históricas como a batista não tem deixado de sentir as influências da religiosidade midiática no entendimento do que é ser batista nos tempos de hoje.

Não se pode esquecer, porém, que a própria origem da denominação batista aponta, segundo Martin Hewitt, para a formação de uma prática religiosa constituída pela conjugação dos ideais dos separatistas europeus e dos anabatistas ingleses (dois grupos de pensamentos distintos), recebendo, assim, influências teológicas do calvinismo, do arminianismo e do anabatismo. Essa confluência de pensamentos chega ao Brasil na segunda metade do século XIX, provocando diversas cisões nas igrejas ao longo da história dos batistas brasileiros, a ponto de ser esse um elemento constitutivo da própria identidade batista, ainda que não sejam poucos os esforços dos batistas brasileiros em procurar uma unidade de pensamento, como se pode comprovar pela veiculação de documentos como Pacto das Igrejas Batistas, Princípios Batistas e Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira

Por conta dessa tentativa de se uniformizar a identidade batista, tem-se refutado constantemente a vivência religiosa que a grande maioria das pessoas tem buscado nesses tempos pós-modernos, a qual está mais voltada às sensações espiritualistas e às promessas de sucesso e felicidade na vida cotidiana. Todavia, a superexposição dos batistas brasileiros à religiosidade midiática parece estar possibilitando a abertura de uma brecha no meio batista para que as ideias pentecostais e neopentecostais ajudem a formar uma nova identidade batista. Não por acaso, essa possível crise identitária passou a ser tema recorrente entre os batistas nos últimos anos, dividindo as opiniões de pastores e líderes da denominação, ainda que poucos deles tenham se dado ao trabalho de refletir sobre os rumos da identidade religiosa em meio à cada vez mais intensa midiatização da religiosidade, que parece ser marca indelével da pós-modernidade.  

sexta-feira, 9 de março de 2012

O ensino de língua materna e a diversidade linguística

Por Jurgen Souza

Marcada por uma acentuada heterogeneidade social, cultural e econômica, a história do nosso país aponta para a diversidade linguística que caracteriza a língua portuguesa aqui falada. A verdade é que o português falado no Brasil apresenta um alto grau de diversidade em virtude da sua grande extensão territorial e, sobretudo, da gritante desigualdade social que, desde os primeiros séculos de colonização, não permitiu que a maioria da população brasileira tivesse acesso aos padrões normativos da língua por ela falada. Contudo, essa diversidade linguística que se formou ao longo da história sociolinguística do nosso país parece ainda não ter atingido o ensino de língua materna, uma vez que boa parte das escolas brasileiras insiste em ensinar única e exclusivamente a variedade padrão preconizada pela gramática normativa, não reconhecendo como legítimas e considerando como erradas, numa atitude de flagrante preconceito linguístico, quaisquer outras variedades linguísticas.  
Não se pode negar que a história sociolinguística do Brasil, desde os primeiros séculos de colonização, foi marcada por uma bipolaridade no uso da língua. No Brasil Colônia, enquanto a reduzida elite colonial, alojada nos centros urbanos, procurava se manter fiel aos padrões gramaticais   lusitanos, a maioria da população – composta por negros, índios e mestiços  –  que se espalhava pelo interior do país falava um português aprendido de modo precário, sem instrutores ou escolas. Todavia, essa bipolarização linguística não é estanque, podendo-se verificar, a partir do início do século XX, uma clara tendência de aproximação entre os dois polos, já que o vigoroso processo de industrialização, a consequente urbanização e a popularização do ensino público foram ocasionando, segundo o pesquisador Dante Lucchesi, uma tendência de mudança no português popular em direção ao padrão urbano culto e, por outro lado, uma tendência de afastamento do padrão normativo europeu no chamado português culto. Mesmo com esse processo de aproximação entre a variedade popular e a variedade culta, é possível, porém, identificar ainda hoje a existência de muitas variedades linguísticas entre um extremo e outro. 
Os moldes em que a nação brasileira foi formada gerou, portanto, uma diversidade linguística que se tornou uma marca do nosso país.  Os diferentes usos da língua falada em território nacional denunciam, de imediato, o intenso processo de variação que os muitos estudos sociolinguísticos comprovam.  No entanto, de acordo com a pesquisadora Tânia Alkimim, as variedades encontradas na língua coexistem dentro de um processo de valoração social, pois essa coexistência se dá no contexto das relações sociais estabelecidas pela estrutura sociopolítica de cada comunidade, a qual costuma considerar algumas variedades como superiores e outras como inferiores. É possível, então, perceber muito claramente que existem variedades de prestígio e variedades não prestigiadas, sendo que, em sociedades de tradição ocidental como a nossa, a variedade linguística que goza de maior prestígio é, em geral, a variedade padrão, cujo uso é requerido pela comunidade em situações mais formais e definido como o modo “correto” de falar, motivo pelo qual as pessoas que não dominam tal variedade acabam sendo alvo do preconceito linguístico. O pesquisador Marcos Bagno declara que esse preconceito é fruto de uma confusão criada ao longo da nossa história entre língua e gramática normativa, sendo reproduzido e alimentado diariamente pelos meios de comunicação em massa, pelos livros didáticos e pela própria escola.
No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, os Parâmetros Curriculares Nacionais já orientam que a diversidade linguística seja trabalhada em sala de aula, no intuito de conduzir os alunos a reconhecer a legitimidade de todas as variedades linguísticas, inclusive as que se afastam da tradição gramatical. É importante ressaltar que não se trata de uma campanha contra o ensino da gramática normativa, até porque são notórias as relações de poder que estão envolvidas no uso da língua. Saber a variedade padrão prescrita pela gramática normativa é, de fato, necessário, uma vez que ela será exigida em algumas situações do cotidiano, podendo ser um instrumento de ascensão ou de exclusão social. Não se deve esquecer, no entanto, que essa é apenas uma das variedades da língua, sendo imprescindível que o estudante tenha ciência da existência de outras variedades linguísticas para que possa se desfazer do preconceito que muitas vezes lhe incutiram a respeito do seu próprio modo de falar.
Portanto, levar a diversidade linguística brasileira para a sala de aula de língua materna é, antes de tudo, uma atitude reveladora de respeito ao próprio usuário da língua, desenvolvendo-lhe a competência linguística necessária para o reconhecimento de que cada variedade linguística tem o seu lugar e o seu papel no âmbito do processo comunicativo para o qual a língua se presta. A escola, que, ao longo da história, sempre serviu aos interesses dos grupos dominantes – escondendo muitos fatos e inventando outros tantos –, depara-se agora com a possibilidade de reparar um dos muitos dos enganos a respeito da língua falada no Brasil. Contudo, é preciso que essa inclusão da diversidade linguística nas aulas de Língua Portuguesa esteja acompanhada de um melhor preparo do professor, sendo essencial que ele tenha acesso a um sólido arcabouço teórico a respeito do assunto, para que esse tipo de trabalho não seja, como muitas vezes ocorre, interpretado como uma tentativa de abolir o ensino da gramática normativa ou como a instituição do temido “tudo pode”. Nessa busca pelo aperfeiçoamento cada vez mais necessário ao papel de educador que o professor exerce, urge que ele saia da inércia intelectual e procure amparo na extensa literatura que tem se produzido acerca desse assunto tão debatido no meio acadêmico.

domingo, 4 de março de 2012

Quando a religiosidade silencia o grito de socorro

Por Jurgen Souza

Se as quase 8 mil mulheres soteropolitanas que tiveram a coragem de denunciar seus agressores em 2011 parecem exemplificar uma mudança no comportamento das vítimas, o silêncio continua sendo a maior barreira para que as leis já existentes possam sair do papel, já que, segundo pesquisas da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, as denúncias efetuadas não correspondem a nem mesmo um terço das agressões sofridas pelas mulheres na capital baiana. Dentre os diversos fatores que contribuem para o silêncio das vítimas, este texto faz uma breve reflexão, a despeito da proximidade do Dia Internacional da Mulher, sobre a influência da religiosidade na atitude passiva das muitas mulheres agredidas em relação aos agressores.
A compreensão dos motivos pelos quais muitas mulheres permanecem caladas diante das agressões sofridas no dia-a-dia passa, antes de tudo, pela construção social do que é ser mulher na cultura patriarcal em que estamos inseridos. Com o auxílio do pensamento judaico-cristão que impera há muito tempo na sociedade ocidental, foi sendo construída uma imagem da mulher como um ser frágil, inferior ao homem – para o qual devia obediência –, restrita ao ambiente doméstico e com a função única de reprodutora da espécie. Mesmo com a independência financeira e com os diversos avanços na legislação no sentido de assegurar os direitos da mulher, essa visão machista, longe de ter sido abolida com a chegada da pós-modernidade, parece arraigada no ideário coletivo de tal maneira que se manifesta sob a forma de violência contra a mulher, a qual tem sofrido quase sempre calada a dor da agressão. Esse silêncio angustiante tem, no entanto, raízes religiosas, ainda que a maioria das igrejas cristãs tente fechar os olhos para sua participação nesse cenário triste que se desenhou na sociedade brasileira, baiana e soteropolitana.
O mais estarrecedor é que a maior parte das agressões contra mulheres, legitimada por esse pensamento banhado de religiosidade, que dá ao homem o direito de subjugar a mulher, é feita pelos próprios parceiros e dentro da própria casa. Numa relação de dominação e coisificação do outro, a violência doméstica contra a mulher conta também, em muitos casos, com a conivência de diversos líderes religiosos, os quais orientam, evocando os argumentos da moral religiosa, que as mulheres agredidas devam compreender e se submeter, em silêncio, à autoridade do homem como “cabeça da família”, não sendo por acaso que o perfil das mulheres que passaram mais tempo sendo agredidas pelos parceiros esteja relacionado a uma vivência religiosa que anula sua autonomia como partícipe da entidade familiar. Em defesa da institucionalidade religiosa do casamento, não são poucos os líderes de igrejas cristãs, mormente as do segmento evangélico, que intimidam as vítimas que procuram o gabinete pastoral para um doloroso desabafo, ainda que seja por não saberem como lidar com o problema ou por terem um respeito demasiado à autoridade religiosa. Certamente, o posicionamento de uma boa parte dos líderes religiosos durante o aconselhamento dessas mulheres têm silenciado o grito de socorro que, em situações mais sérias, poderia salvar-lhes a vida.
Cabe ressaltar, porém, sobretudo para os leitores menos atentos, que a linha argumentativa aqui desenvolvida não é uma campanha contra a vivência da religiosidade, mas uma constatação de que, quando tal vivência não é sadia a ponto de preservar a vida e a integridade dos que a assumem, ela pode contribuir para que atrocidades sejam feitas com a conivência e, por que não dizer, com o auxílio indireto das lideranças religiosas. É claro que, em meio às diversas instituições e lideranças religiosas passivas diante da violência doméstica contra a mulher, há também aquelas que, compreendendo a importante função social que exercem na vida cotidiana, têm se posicionado veementemente contrárias a qualquer ato de subjugação e desvalorização da mulher, por entenderem que a continuidade da reprodução desse sistema ideológico que a religião ajudou a criar está na base de muitas agressões sofridas por mulheres Brasil afora. Assim, uma orientação religiosa que induza mulheres agredidas a, silenciosamente, conviverem com seus agressores parece ser incongruente com a tão desejada religiosidade sadia, a qual merece o respeito até de quem não é religioso. Urge, portanto, que igrejas cristãs repensem se os valores que têm transmitido e defendido encontram, de fato, algum respaldo nos ensinamentos deixados pelo Cristo ou estão fundados apenas na intolerância e no desrespeito do sexismo que tem marcado negativamente a história da humanidade.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O papel social da igreja contemporânea à luz do movimento anabatista

Por Jurgen Souza


Uma prática religiosa que não nos conduza ao envolvimento com o outro e suas mazelas não pode, em hipótese alguma, revelar Deus ao mundo, pois que Ele só se revela no ato genuíno de comunhão. Diante da profunda apatia social que caracteriza as igrejas cristãs contemporâneas, especialmente as do segmento evangélico, urge repensarmos a forma como as instituições eclesiásticas têm se envolvido com as mazelas que atingem as minorias sociais do mundo pós-moderno, mas qualquer reflexão séria a esse respeito acabará nos levando de volta ao movimento anabatista, um momento da história da igreja quase desconhecido pelos cristãos de hoje. Todavia, para uma melhor compreensão dos valores que nortearam os anabatistas, é importante retroceder ao pensamento do reformador suíço Zwínglio.
Zwínglio nasceu em 1484 na suíça e cresceu no seio de uma família rica e conceituada. Estudou em Viena e Basileia, onde recebeu uma formação humanística bastante ampla, o que explica a forte influência de Erasmo para sua visão de mundo. Não chegou a concluir formalmente os estudos teológicos, mas ainda assim foi ordenado sacerdote e assumiu a paróquia de Glarus, sendo convocado em 1518 para ser sacerdote na catedral de Zurique. Somente a partir daí é que sua atividade reformatória tem início, influenciada pela leitura dos autores clássicos antigos, dos Pais da Igreja, de Agostinho, de Paulo e, é claro, do Novo Testamento. Sob a influência pacifista do humanismo, o sacerdote Zwínglio considerava pecado o fato de os suíços se oferecerem como mercenários a potências estrangeiras, mas o curioso era que o próprio Zwínglio tinha atuado como mercenário alguns anos antes, em troca de uma pensão anual que recebia do papa. Sua mudança de pensamento também o levou a abrir mão da pensão papal.
Apesar de ter lido todos os escritos de Lutero, não se considerava seu discípulo, divergindo dele em muitos sentidos, mesmo porque a Suíça de Zwínglio era bem diferente da Alemanha de Lutero no aspecto político, social e filosófico, o que influenciava, sem dúvida, no modo de se fazer teologia. Diferente de Lutero, sua separação de Roma foi bem mais fácil e radical, mas isso não quer dizer que a Reforma na Suíça tenha sido menos complicada que na Alemanha. Em Zurique, a reforma foi lenta, pois Zwínglio não podia se dar ao luxo de ser visto como aliado do excomungado e banido Lutero, mas nem por isso suas pregações deixaram de ter consequências. Suas propostas de reforma do canonicato repercutiram no fato de os bens e as rendas da igreja serem colocados a serviço da política social da cidade, atendendo pobres e necessitados. A maior repercussão, porém, ficou por conta de suas pregações contra as leis cerimoniais. Suas críticas às práticas quaresmais, por exemplo, culminaram com o episódio conhecido como “linguiçada”, que acabou lhe rendendo um processo disciplinar e sua consequente renúncia às funções sacerdotais.
Mesmo não sendo sacerdote, Zwínglio continuou pregando, pois o conselho – órgão administrativo da cidade – criou para ele o ministério da pregação do evangelho, estando agora a serviço não mais do clero católico e sim da administração pública de Zurique. Foi através do conselho que Zwínglio pode propagar, de forma mais rápida e mais radical, os pensamentos reformistas. Em 1523, ele desenvolveu sua teologia em 67 “conclusões”, as quais formavam o fundamento dogmático da nova igreja. A partir de então, comunidade cristã e comunidade civil eram praticamente a mesma coisa, uma vez que, para Zwínglio, igreja e Estado eram um só. Essa “teocracia” zwingliana procurava se orientar pela Bíblia, a qual serviu de critério para a reforma da missa, retirando do culto tudo que pudesse propiciar a sensação de salvação: música de órgão, canto coral, ornamentação, altar e imagens. Mais tarde, o conselho também facultou o matrimônio aos sacerdotes, beneficiando o próprio Zwínglio, que se casou com a viúva Anna Reinhart em 1524. Assim, era possível perceber que o curso da Reforma suíça não podia ser mais detido.
Todavia, dentro do próprio movimento reformista liderado por Zwínglio começaram a surgir fortes críticas à sua teologia, pois alguns de seus adeptos acreditavam que as reformas não tinham avançado o suficiente. A principal crítica era a de que, se a igreja agora estava liberta do jugo romano, estava submetida ao jugo do Estado. Esses descontentes foram chamados de “entusiastas” ou de “anabatistas” e procuraram alternativas para uma igreja carente de mudanças. Faziam oposição a Roma, mas também não estavam totalmente aliados a igrejas da Reforma luterana e ao emergente calvinismo, pois não aceitavam a união de igreja e Estado, ou de comunidade e burguesia. Assim, os anabatistas traziam elementos da teologia e piedade medievais, das teologias de Lutero, Zwínglio e de Calvino, mas não podiam ser considerados nem católicos nem protestantes, sendo os grupos que compunham tal movimento unânimes mesmo somente no ataque aos abusos eclesiais que tiravam a credibilidade da fé cristã e na crítica ao batismo de infantes.
No seu início, o anabatismo era um movimento dinâmico, religioso e sociorrevolucionário, por meio do qual se buscava a liberdade radical na igreja e na sociedade. As decepções com Zwínglio e com o conselho de Zurique conduziram os anabatistas ao rompimento com a igreja oficial e a aliarem-se com os camponeses, até porque eles almejavam mais que uma reforma da igreja, mas uma reforma da sociedade. Seu modelo eclesiológico passou a ser o da minoria num mundo de maiorias. Contudo, depois da catástrofe dos camponeses, os anabatistas passaram a ser um grupo pequeno e que acabou se definindo como movimento reformatório em 1527, com a criação da Associação Fraterna, na qual encontramos as afirmações básicas dos anabatistas: batismo de fé, excomunhão, negativa ao juramento, negativa à prestação de serviço militar, comunidade formada pelos verdadeiramente crentes, livre eleição de pastores, a Santa Ceia como expressão da comunhão cristã e separação do mundo. O que se percebe, a partir de então, é que o movimento anabatista desejava se separar do mundo (igreja versus sociedade), transformando-se num protótipo de sociedade melhor. Essa separação seria também a separação em relação às anteriores aspirações sociorrevolucionárias, mas isso não fez com que o distanciamento em relação aos camponeses fosse radical. Houve, na verdade, uma reinterpretação das exigências sociorrevolucionárias, e novamente camponeses e anabatistas estava unidos pela livre escolha de pastores, negando-se a pagar o dízimo (que estava sendo administrado pelos líderes políticos do conselho de Zurique) e negando-se a jurar obediência à autoridade civil.
 Entre os grandes nomes do movimento anabatista, alguns merecem destaque por conta da influência de suas ideias. O pensamento de Hans Hut refletia a respeito da purificação interna do ser humano, dando continuidade aos pensamentos místicos de Thomas Müntzer (ao lado do qual ele lutou na ocasião da derrota dos camponeses) e ganhando muitos adeptos, principalmente entre os desiludidos com a catástrofe campesina. Jakob Huter, ao contrário de Hans Hut, difundiu a necessidade de se viver o anabatismo em comunidade, fazendo da comunhão de bens dos primeiros cristãos a base para um estilo de vida que erradicou o analfabetismo e até mesmo se tornou um modelo de sucesso econômico. Pilgram Marpeck, por sua vez, rejeitou o profundo dualismo entre igreja e mundo, típico da maioria dos anabatistas, pois acreditava que deveria haver colaboração entre cristãos e comunidade civil, desde que não fossem colocadas em xeque a liberdade e a obediência em relação ao evangelho. Já o alemão Melchior Hoffman propagou um anticlericalismo agressivo e posições espiritualistas, especialmente na interpretação da doutrina eucarística, formando um grupo de pessoas com as quais buscava alcançar a pureza interna e a certeza da fé. O anabatismo ganhou, porém, uma nova identidade através de Menno Simons, que difundiu a ideia de que o cristão deveria se afastar de sua vida carnal e a igreja também deveria se afastar do que é pecaminoso nesse mundo, abandonando, assim, a agressividade sociorrevolucionária dos primeiros momentos, em busca de uma pureza espiritual que a impedia de se envolver com as questões sociais. 
Infelizmente é esse mesmo pensamento por demais espiritualista e pouco interessado em transformações sociais que impera na igreja cristã contemporânea, evidenciando uma atitude omissa que a torna cúmplice do sistema opressor em que vivemos na sociedade pós-moderna. Se seria anacronismo imaginar, nos dias de hoje, um retorno ao pensamento sociorrevolucionário do movimento anabatista, é inegável a necessidade premente de uma mudança na postura das instituições eclesiásticas em relação ao papel que elas devem assumir como possíveis agentes de transformação social na comunidade da qual fazem parte.  

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Bahia, Bahia, que lugar é esse?

Por Jurgen Souza

Em meio ao tormento que a população baiana, destacadamente os moradores de Salvador, tem vivido por conta da greve da Polícia Militar, é preciso que tenhamos a sensatez de fazer uma reflexão séria e sem partidarismos para compreendermos, de fato, os elementos que estão envolvidos nessa batalha entre os grevistas e o governo do Estado da Bahia. É inegável que, ainda que as pautas reivindicatórias sejam justas, uma mobilização de repercussões nacionais e internacionais como essa não parece estar firmada tão-somente no interesse da categoria em conseguir melhorias salariais ou mesmo de trabalho. Basta uma pequena pausa para revirar o baú da história recente da política baiana e brasileira para se verificar o sórdido jogo de interesses que salta lampejante para o primeiro plano do conflito. Retrocedamos há pouco mais de uma década e compreendamos os fatos.
No começo dos anos 2000, o grupo reunido em torno do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL – atual DEM) detinha o poder político e exercia forte influência no judiciário e nos tribunais de contas do estado, enquanto a oposição era composta por alguns políticos do PT, PSB e PCdoB. O país vivia uma crise ética que envolvia os senadores Antônio Carlos Magalhães, cacique da política baiana, e José Roberto Arruda (PSDB), acusados de violar o painel do senado para manipular o resultado das votações no plenário, motivo pelo qual, no dia 16 de maio de 2001, milhares de estudantes universitários e secundaristas de Salvador, além de vários líderes de oposição à política carlista na Bahia (incluindo o então deputado federal Jaques Wagner, do PT), saíram às ruas protestando contra a corrupção e pedindo a cassação dos acusados. Ainda que a manifestação transcorresse pacificamente, o governador César Borges (PFL – atual DEM) deu ordem à tropa de choque da polícia militar para reprimir os manifestantes violentamente (com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha), chegando ao ponto de invadir a faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, violando uma área federal. Pontapé inicial para a derrocada da política carlista no estado, essa manifestação parecia anunciar uma mudança nos rumos políticos da Bahia, mas contraditoriamente o atual vice-governador, Otto Alencar, é o mesmo que, junto com César Borges, ordenou a ação truculenta contra os estudantes e, pior que isso, o coronel Alfredo Castro, que comandou a tropa de choque naquela ocasião, é hoje o comandante-geral da PM.
Ainda em 2001, no mês de julho, os policiais militares da Bahia, contando com o apoio de diversos políticos da oposição, deram início a uma greve que, mesmo não tendo gerado um aumento tão grande no número de homicídios, trouxe aos baianos o pânico dos arrastões e a sensação de insegurança nas ruas. Um dos principais nomes do movimento grevista era o soldado Marco Prisco, o mesmo que hoje lidera o grupo de policiais que ocupou a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, o qual revelara que, naquela época, o então deputado federal Jaques Wagner e outras lideranças do PT declararam pleno apoio à greve, chegando a fazer, segundo afirmou Prisco, uma doação de mais de R$ 3 mil ao movimento grevista, além da disponibilização de veículos. Por conta da sua atuação na greve de 2001 e pela tentativa de aquartelamento na sede do 8º BPM/São Joaquim, o soldado Marco Prisco foi exonerado em 9 de janeiro de 2002 e, desde então, tem feito uma intensa campanha junto a outros membros da categoria para a sua readmissão, tomando por base a Lei Federal nº 12.191/2010 (a Lei de Anistia), ignorada solenemente pelo governo do Estado da Bahia. De acordo com Prisco, que hoje é presidente da Associação dos Policiais e Bombeiros do Estado da Bahia (Aspra-BA), Jaques Wagner, que outrora apoiara os policiais grevistas, é um traidor, mas o atual governador do Estado da Bahia, desmentindo as acusações do principal líder da greve de 2012, nega veementemente que tenha financiado ou sequer dado apoio logístico ao movimento grevista de 2001.  
Não deixemos, porém, que a poeira levantada com esses fatos revirados no baú da história nos impeça de enxergar as coisas como realmente são e acabemos por eleger, como é de costume em situações como essa, o ex-soldado Marco Prisco como um mártir do movimento grevista. Antes de qualquer conclusão precipitada, é importante rememorar a trajetória de Prisco desde a exoneração da PM até sua ascensão ao cargo de presidente da Aspra-BA. Aproveitando a visibilidade que havia conquistado e prometendo lutar por melhorias para os policiais, ele foi candidato a deputado estadual pelo PTC (Partido Trabalhista Cristão), em 2010, mas não conseguiu se eleger. Manteve-se na política através do MPL (Movimento Polícia Legal) e acabou assumindo, naquele mesmo ano, a presidência da Aspra-BA, mesmo estando afastado do quadro da PM. Atualmente filiado ao PSDB, o ex-soldado Marco Prisco participou de movimentos grevistas também no Maranhão e em Roraima, onde chegou a ser acusado de falsidade ideológica por ter se apresentado publicamente como “deputado estadual baiano”. Com um histórico desse seria possível, minimamente, questionar se Prisco milita coletivamente ou em causa própria, já que talvez não seja por acaso que a anistia para os policiais que participaram da greve (desta e daquela de 2001) esteja entre as principais pautas reivindicatórias. Não seria absurdo, ainda, indagar se as motivações de Prisco seriam meramente partidárias, uma vez que, agora, ele e o governador Jaques Wagner estão em lados opostos no jogo político.
Para se compreender, portanto, o cenário em que se desenhou a atual greve da PM, é necessário revirar alguns fatos do passado em busca de revelações. As contradições políticas do atual governo apontam para o fato de que, mesmo com o enfraquecimento da política carlista no estado, os partidos que antes militavam na oposição ainda não podem dizer que já aprenderam a caminhar coerentemente como governo e, à medida que se contradizem em suas ações, fortalecem os que hoje se lhe opõem. Não se pode negar, porém, que muitos dos que contribuíram para a chegada ao poder dos partidos que antes eram oposição se viram traídos por não conseguirem usar a máquina administrativa em benefício próprio, criando, assim, um forte clima de tensão e animosidade entre os que outrora foram aliados.