Por
Jurgen Souza e Nilza Farias
Apesar de não vivermos mais em uma sociedade escravocrata, é possível
perceber, ainda hoje, os resquícios do preconceito que permeia algumas
das mais nítidas convenções sociais e, através de ações desumanas, conduz a uma
vivência social excludente, com a qual até mesmo os que se dizem cristãos têm
sido coniventes. Vale lembrar que a religiosidade, quando está amparada na equivocada
ideia de que existem pessoas superiores e pessoas inferiores, pode desencadear
a face mais nefasta do preconceito, pois segrega em nome de Deus e toma
por base uma leitura deturpada das Escrituras Sagradas. O que se pretende aqui,
porém, é demonstrar, através de um estudo do texto de Filemon 1:8-20, que a
orientação bíblica, embora haja quem se apegue a algumas passagens
descontextualizadas, é que devemos amar o próximo com uma intensidade que nos
faça sempre colocar o ser humano em primeiro lugar e buscar a superação das convenções
sociais, para anunciar com ações práticas que todos têm igual valor diante de
Deus. Espera-se, com isso, que os cristãos, de maneira geral, possam refletir a
respeito de suas posturas e práticas, procurando ajustar sua vivência social à
mensagem transmitida por Jesus.
A epístola a Filemon, escrita pelo apóstolo Paulo entre o final da
década de 50 d.C. e o início da década de 60 d.C., apesar de não condenar explicitamente o
regime escravocrata, ataca as bases ideológicas legitimadoras da escravidão por
meio de uma orientação que era válida para Filemon ou qualquer pessoa que
abraçasse o cristianismo. Ao contrário do que pensam
os ainda hoje defensores da prática escravagista, a epístola a Filemon não se
constitui como uma evidência da apologia bíblica à escravidão, já que os princípios cristãos mencionados
nela diferem do pensamento de superioridade típico do regime escravocrata e apontam
para a necessidade de demonstrarmos amor por meio das nossas ações diárias a todos indistintamente, inclusive àqueles que nos servem. Ressalta-se
que, naquela época, boa parte dos habitantes da
região de Colossos, onde residia o destinatário da carta, era composta por
escravos e, por isso mesmo, havia leis específicas que procuravam dar conta das
questões que envolvessem essa parcela da população. Não se saiba com
exatidão
o que motivou a fuga do escravo Onésimo, mas era fato
que a lei romana dava ao escravo fugido a possibilidade de se refugiar em um
altar religioso, seja em espaço público ou em uma casa particular, sendo que a
pessoa responsável pelo altar deveria agir, então, como um intermediário em
favor do escravo, quando o re-encaminhasse ao seu senhor. É possível, portanto,
que Onésimo tenha se aproximado de Paulo na prisão por conta, inicialmente,
dessa prerrogativa da lei, mas acabou se convertendo ao cristianismo através da
pregação do apóstolo.
O fato de
“Onésimo” significar “útil ou valoroso” e “Filemon” significar “amigo ou
amoroso” já parece prenunciar aquilo que o conteúdo da carta revelará: o amor
ao próximo deve superar as convenções sociais para, com foco no ser humano,
anunciar que todos têm igual valor diante de Deus. A proposta da carta,
portanto, está centrada no princípio cristão de que o ser humano deve ser
priorizado, ainda que em detrimento das instituições e dos contratos sociais. Nota-se
logo de início que, apesar de Paulo ser respeitado por Filemon como uma
importante autoridade eclesiástica, as palavras do
apóstolo possuem um tom de súplica e apelam à sensibilidade cristã de Filemon,
conforme se lê em “Embora eu tenha plena
liberdade em Cristo para te ordenar o que deves fazer, prefiro pedir-te
confiado no teu amor” (v 8- 9a). Isso se confirma quando, mais adiante, Paulo
deixa bem claro que o fato de ter escolhido pedir ao invés ordenar não retira
sua autoridade sobre o destinatário da carta, mas ressalta que, para fazê-lo
atender a um pedido tão despropositado numa sociedade escravocrata como aquela,
era necessário evocar o amor cristão. Assim, o trecho “E se ele te causou algum prejuízo ou te deve alguma coisa, lança-o na
minha conta. Eu, Paulo, escrevo isso de próprio punho; eu o pagarei, para não
mencionar que tu me deves a ti mesmo.” (v. 18-19), que parece ser um
arroubo de arrogância de Paulo, é, na verdade, uma explicação de que ele
abdicou de falar como autoridade eclesiástica para falar como irmão em Cristo.
Ao interceder por Onésimo, porém, Paulo relata que o conheceu na
prisão, menciona o fato de ele ter se convertido e faz questão de, através de
um trocadilho com o significado do nome do escravo, demonstrar que ele agora
tem muito mais valor, conforme se observa no trecho “Eu, Paulo, já velho e agora também prisioneiro de Cristo Jesus, venho
interceder por meu filho Onésimo, que gerei quando estava na prisão.
Anteriormente, ele te foi inútil, mas agora é muito útil para ti e para mim.”
(v. 9b-11). Cumprindo, então, o que determinava a lei romana acerca do escravo
fugido, o apóstolo Paulo re-encaminha Onésimo a Filemon, destacando a
importância que ele teve para seu ministério enquanto estava preso, como se
pode ler em “Eu o envio de volta a ti,
como se estivesse enviando o meu próprio coração. Gostaria de mantê-lo comigo,
para que em teu lugar me servisse na prisão por amor do evangelho, mas eu não
quis fazer nada sem o teu consentimento, para que a tua bondade não fosse
forçada, mas sim espontânea.” (v. 12-14).
Contudo, o ponto-chave do texto em análise é, de fato, o momento
em que o apóstolo pede a Filemon que receba Onésimo de volta não mais como
escravo, mas como um irmão amado que tem tanto valor quanto ele, Paulo, ou o
próprio Filemon, conforme se observa na leitura do trecho “Pode ser que ele tenha se separado de ti por algum tempo, para que
pudesses reavê-lo para sempre, não mais como escravo; aliás, melhor do que
escravo, como irmão amado, particularmente por mim, e ainda mais por ti, tanto
humanamente como também no Senhor.” (v. 15-16). Dessa forma, Paulo reitera,
mais uma vez, que a vivência do evangelho de Cristo não condiz com o errôneo
pensamento de que existem pessoas superiores e pessoas inferiores, mas orienta
a uma postura de igualdade e respeito mútuo entre quaisquer pessoas,
confirmando o que já havia dito aos crentes das igrejas cristãs na Galácia ao
afirmar que “Todos os que em Cristo
fostes batizados, de Cristo vos revestistes. Não há judeu nem grego, não há
escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo
Jesus.” (Gálatas 3:27-28). Por fim, sabendo do respeito e da consideração
que Filemon nutria por ele, o apóstolo pede que Onésimo seja recebido e tratado
como se fosse o próprio Paulo, afirmando que esse favor lhe seria de tamanha
importância que lhe traria mais ânimo ao coração, como se pode verificar em “Assim, se me consideras um irmão na fé,
recebe-o como se recebesses a mim mesmo. [...] Sim, irmão, gostaria de ser
beneficiado por ti no Senhor; dê ânimo ao meu coração em Cristo.” (v. 17 e
20).
Inúmeros cristãos interpretaram, ao longo dos anos, o
texto de Filemon 1:8-20 como uma autorização
para a segregação social e até mesmo para a escravização dos segregados, compreendendo
que Paulo não mencionou uma só palavra em favor da libertação de Onésimo,
orientando somente que Filemon recebesse de volta o escravo fugitivo. Embora
haja quem faça ainda hoje uma leitura excludente desse texto, não se pode
negar, porém, que a proposta de se tratar um homem socialmente inferiorizado
como igual derruba qualquer pensamento escravagista, uma vez que a escravidão
está embasada exatamente na ideia de superioridade de um determinado grupo
social sobre outro(s). Por essa ótica, o discurso antiescravocrata de Paulo,
mesmo estando nas entrelinhas, demonstra que, na condição de escravo, Onésimo
foi inútil a Filemon, deixando transparecer que, para o apóstolo, a escravidão
inutiliza o ser humano, o qual só tem valor de fato quando goza de liberdade
social e espiritual. Nota-se que Paulo não orienta o retorno de Onésimo à casa
de Filemon como um escravo, mas como um irmão tão valoroso quanto o próprio
apóstolo ou quanto o próprio Filemon.
Mesmo não estando hoje sob o fardo da escravidão,
precisamos nos esforçar enquanto cristãos para amar o próximo de uma maneira
que transcenda às convenções sociais e revele ao mundo a graça de Deus através
das nossas atitudes, já que foi essa a orientação de Jesus Cristo àqueles que
se dizem seus discípulos. Precisamos buscar uma vivência religiosa capaz de
subverter as convenções sociais e, de maneira igualitária, valorizar todas as
pessoas, independente da suas raízes étnicas ou da sua condição socioeconômica.
Uma postura como essa requer que escolhamos, de forma bem clara, que tipo de evangelho queremos proclamar ao mundo: um
evangelho excludente e compromissado tão somente com a manutenção de uma estrutura
social que beneficia o grupo hegemônico, legitimando a opressão e a segregação
de quaisquer pessoas que não fazem parte dele, ou um evangelho includente
e compromissado com os valores transmitidos por Jesus Cristo, possibilitando a
compreensão de que todas as pessoas indistintamente devem ser tratadas com
igual respeito. De maneira muito sábia, o apóstolo Paulo orientou Filemon
naquele momento, e indiretamente nos orienta ainda hoje, a proclamar um
evangelho includente, capaz de conduzir a um posicionamento contrário às
práticas sociais mais comumente aceitas, a fim de priorizar a dignidade humana
ou, em alguns casos mais extremos, a própria vida humana.