sábado, 2 de junho de 2012

A religião cristã a serviço de Mamom



Por Jurgen Souza


Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom. 
(Mateus 6:24)





Na tradição cultural do povo judeu, de quem o cristianismo herdou as bases religiosas, o termo Mamom (uma transliteração da palavra hebraica que significaria dinheiro ou riqueza) faz referência a uma divindade personificada nos bens materiais. A mensagem trazida por Jesus e que deveria ser norteadora da vivência religiosa do cristianismo adverte claramente que quem é controlado pelo desejo de possuir, numa evidente adoração a Mamom, não pode jamais ser considerado um servo de Deus. Todavia, na contramão dos ensinamentos de Cristo, muitas religiões cristãs da sociedade contemporânea, especialmente as do segmento evangélico, têm assumido posturas ideológicas legitimadoras do neoliberalismo econômico, transformando a fé em mercadoria e fazendo de Mamom o seu verdadeiro deus.
Ao contrário, porém, do que se pode imaginar, essa relação entre o protestantismo e o capitalismo não é recente, mas remonta aos primórdios do movimento protestante, o qual sempre defendeu que uma sociedade que refletisse a glória de Deus estaria diretamente relacionada à dedicação incondicional ao trabalho e à busca pela aquisição de bens. Segundo Max Weber, o espírito capitalista se fortaleceu e se propagou rapidamente amparado nesse pensamento protestante, o qual justificaria a busca desenfreada desse novo grupo de cristãos pela lucratividade e pelo acúmulo de bens, já que o não agir dessa maneira implicaria em desagradar aos planos do próprio Deus. Embora, porém, o capitalismo tenha se constituído a partir da herança da ideologia protestante e das relações sociais estabelecidas por ela, a própria religião acabou se tornando uma mercadoria e servindo aos interesses das elites socioeconômicas, permitindo compreender que a salvação do indivíduo estaria condicionada ao trabalho e à riqueza criada por ele. Karl Marx afirma que esse processo de mercadologização da religião ocorre quando a força de trabalho do indivíduo e a riqueza que ele pode produzir passam a ser exigidas como requisitos para adquirir a salvação oferecida através religião.
Ainda que esse processo de mercadologização da religião por parte do segmento evangélico tenha mesmo raízes históricas, certamente foi na sociedade contemporânea que a transformação da vivência religiosa em mercadoria do sistema capitalista acabou ganhando impulso, já que as religiões ditas protestantes, especialmente as pentecostais e neopentecostais, passaram a assumir posturas ideológicas cada vez mais legitimadoras do neoliberalismo econômico. Ao relacionar a vivência religiosa bem sucedida à realização das aspirações materiais, através da chamada “teologia da prosperidade”, muitas igrejas evangélicas acabam transmitindo a ideia de que, assim como numa relação contratual qualquer, a pessoa que assume o compromisso financeiro por meio dos dízimos e das ofertas pode exigir que Deus a abençoe com aquilo que ela deseja. De acordo com Pierre Bourdieu, uma nova vivência religiosa surge, portanto, nesses tempos pós-modernos, tornando a lógica interna da economia de mercado visível no interior do campo religioso e transformando a relação entre fiéis e igrejas numa relação clientelista, alimentada por uma variedade de produtos e serviços atraentes aos milhões de consumidores da fé que anseiam pela tão propagada ascensão financeira instantânea.
Esse nítido retorno à compra de indulgências, princípio herético veementemente combatido por Lutero nos primórdios do movimento protestante, tem agora o auxílio das estratégias de marketing típicas da mídia televisiva e, com tal veiculação rápida e exponencial, o discurso religioso impregnado de capitalismo tem se tornado uma poderosa ferramenta de dominação ideológica, fazendo com que uma multidão de pessoas, alienada por uma vivência religiosa desprovida de qualquer senso crítico, deixe-se dominar pelos líderes religiosos e pelas instituições eclesiásticas que assumem tal postura. Os testemunhos emocionados transmitidos pela televisão mostram ao público geral os consumidores satisfeitos com os produtos adquiridos, aguçando outros clientes em potencial com as mais variadas ofertas de uma solução imediata que satisfaça suas necessidades e sempre vinculando tais ofertas a um “pagamento” financeiro. Não é à toa, portanto, que essas instituições eclesiásticas apresentem um crescimento vertiginoso no número de adeptos e que, na ânsia por alcançar uma clientela cada vez maior, invistam muito dinheiro para ter mais espaço na mídia televisiva, uma vez que a visibilidade midiática permite uma exposição ainda maior dos produtos oferecidos e atinge um mercado consumidor muito mais abrangente.
De acordo com Peter Berger, quando as pessoas consideram esse discurso religioso impregnado de interesses mercadológicos como a verdade absoluta, refutando qualquer outro discurso que dela divirja, isso demonstra que elas passaram pelo processo de alienação. Justamente por conta desse processo de alienação, acabaram se tornando mais vulneráveis ao poder de dominação dos muitos líderes religiosos mal intencionados, sendo induzidos até a fazer empréstimos bancários para que, por meio das campanhas e dos propósitos constantes, possam ter acesso às bênçãos de Deus. Assim, dominadas por essa ideologia perversa, inúmeras são as pessoas que não medem esforços para participar dos propósitos financeiros, apesar da continuidade das muitas mazelas sociais com as quais convivem diariamente, e sequer questionam o fato de seus líderes religiosos construírem um verdadeiro império enquanto muitos dos que se amontoam nos templos mal conseguem pagar as próprias contas.