sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Não há lugar: uma reflexão natalina sobre os efeitos da religiosidade

Por Jurgen Souza

Todas as vezes que o natal se aproxima, as pessoas parecem se esconder por detrás daqueles enfeites coloridos e daquelas musiquinhas alegres. Conta-se e reconta-se a história do nascimento de Jesus, mas poucos são os que, verdadeiramente, refletem a respeito dos ensinamentos que esse acontecimento ocorrido há mais de dois mil anos pode trazer à vida contemporânea. Indubitavelmente, a sociedade em que vivemos nesse princípio de século XXI, imersa nos mais variados conflitos econômicos, políticos e sociais, tem ainda muito a aprender com essa história aparentemente tão conhecida. Este texto, no entanto, ater-se-á a um aspecto intrigante do relato bíblico (Lucas 2:1-7), o qual envolve o fato de Jesus, o filho de Deus que veio trazer salvação ao mundo, ter nascido numa manjedoura dentro de um estábulo.
            A tradição cristã incutiu no imaginário coletivo a ideia de que o nascimento de Jesus se deu nessas condições para que se cumprissem as profecias a respeito do tão esperado “messias”. Esse pensamento, porém, não tem comprovação bíblica, uma vez que não há registro de que nenhum profeta tenha feito tal afirmação. Embora a bíblia não seja a única fonte histórica que possa ser usada, é a ela que se apegam os muitos pregadores que vociferam tal forma de explicar essa questão. De acordo com o texto bíblico, o profeta Isaías afirmou que ele nasceria de uma virgem (Isaías 7:14), o profeta Miqueias afirmou que ele nasceria em Belém (Miqueias 5:2), e o profeta Zacarias afirmou que ele seria de origem humilde (Zacarias 9:9). Contudo, profecia alguma aponta para o fato de o redentor da humanidade nascer numa estrebaria.
Outra ideia equivocada e, ainda assim, muito veiculada a respeito desse aspecto do nascimento de Jesus faz alusão ao simples fato de que a hospedaria estaria lotada, o que haveria obrigado José e Maria a se abrigar numa estrebaria. Para legitimar esse pensamento conhecido no meio cristão, os pregadores costumam usar o argumento textual, enfatizando que a bíblia afirma que “não havia lugar na hospedaria”. É preciso, entretanto, esclarecer que tal afirmação acaba, na verdade, por distorcer o relato bíblico, já que omite uma expressão presente no texto que alteraria profundamente sua interpretação. O evangelho de Lucas apresenta como explicação para o nascimento de Jesus ter acontecido no meio de um estábulo o fato de “não haver lugar PARA ELES na hospedaria” (Lucas 2:7), o que permite compreender que o problema não era a falta de vagas na hospedaria e sim a impossibilidade de José e Maria conseguirem um lugar que os recebesse.     
            Muitos são os pregadores que procuram explicar essa impossibilidade a partir da condição sócio-econômica da família Jesus. De acordo com esse pensamento, José e Maria, por serem pobres, não teriam condições de pagar a hospedaria durante o período do recenseamento que os levou a Belém (Lucas 2:4), tendo Maria que dar à luz numa estrebaria. Muito embora eles não possuíssem mesmo uma boa condição financeira, cabe ressaltar dois pontos cruciais acerca do contexto em que tudo isso ocorre. Em primeiro lugar, era comum que, num período de recenseamento como esse, houvesse hospedarias para todos os gostos e bolsos, pois até mesmo as casas de família costumavam, momentaneamente, hospedar os de fora. Além disso, vale a pena lembrar que o ofício de carpinteiro (Mateus 13:55), se não permitia que José figurasse entre os homens mais bem escalonados na sociedade de sua época, certamente lhe dava ao menos o suficiente para o aluguel de uma hospedaria das mais simples por alguns dias.
          Todavia, a compreensão da real causa para não haver lugar para eles na hospedaria e, por isso mesmo, o nascimento de Jesus ter ocorrido num estábulo passa, antes de tudo, por uma análise a respeito dos costumes que envolviam a sociedade judaica. Assim, não se pode desprezar, de maneira alguma, a forte influência da religiosidade nos hábitos daquele povo, a ponto de as ações cotidianas serem totalmente orientadas por preceitos religiosos. A lei judaica considerava impura a mulher que estivesse prestes a dar à luz, bem como seria impuro tudo o que ela tocasse durante o tempo da sua purificação, que variava de 40 a 80 dias, a depender do sexo do bebê (Levítico 12:1-5). Como o relato bíblico deixa clara a condição de parturiente na qual Maria se encontrava (Lucas 2:5-6), é bastante provável que nenhum hospedeiro tenha se disponibilizado a recebê-la, obrigando seu esposo a buscar abrigo numa estrebaria para que ela não desse à luz ao relento. Jesus, desde o momento do seu nascimento, foi vítima da exclusão e da opressão social ocasionadas pelo apego demasiado do povo judeu à religiosidade.
            Mesmo que atualmente nosso contexto social seja bem diferente da época em que Jesus nasceu, ainda é perceptível a existência da exclusão e da opressão social que a religiosidade exacerbada pode ocasionar. Em pleno século XXI, milhares de pessoas são discriminadas diariamente e inúmeros conflitos bélicos continuam sendo deflagrados por conta da intolerância religiosa. No Brasil, o radicalismo religioso demoniza e exclui, por exemplo, os praticantes das religiões de origem africana, desrespeitando-os como cidadãos, apesar de haver leis que defendam a liberdade religiosa em todo o território nacional. Ainda hoje, portanto, a pessoa de Jesus – por meio dos seus ensinamentos – não tem encontrado lugar na vida de muita gente, em virtude de uma religiosidade cega que acaba, na verdade, invalidando a mensagem que Ele veio trazer ao mundo.    
           
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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Põe mais dendê nessa moqueca

Por Jurgen Souza


           Não foi à toa que, na cerimônia do encerramento do 21º Encontro Ibero-Americano de Afrodescendentes (reunindo representantes de 14 países da África, da América do Sul e do Caribe), Salvador foi declarada oficialmente a capital negra da América Latina. Dados recentes do IBGE confirmam que os afrodescendentes equivalem a 50,7% da população brasileira, sendo que, entre os soteropolitanos, esse percentual chega a 80%. Para além da constatação fria dos números, Salvador carrega consigo uma inegável herança cultural africana, traduzida em cores, sabores, ritmos e credos. Tal reconhecimento, em pleno século XXI, é fruto de uma história de luta e resistência que remonta ao passado e nos conduz, inevitavelmente, a uma reflexão a respeito das nossas origens.
A chegada dos primeiros africanos no Brasil deu-se ainda no primeiro século da colonização europeia. Depois de explorarem a força de trabalho indígena na extração do pau-brasil e no cultivo de cana-de-açúcar, tabaco e algodão no início do século XVI, as campanhas jesuítas contra a escravização dos nativos, dentre outros fatores, acabaram levando os portugueses a trazer para o Brasil, a partir do final daquele século, um grande contingente de escravos para servir de mão-de-obra na cultura agroexportadora do açúcar. Estima-se que, entre os séculos XVI e XVIII, chegaram ao Brasil cerca de 5 milhões de escravos africanos de várias etnias e falantes de mais de 200 línguas diferentes. Os estudos a respeito desse assunto relatam que, nesse período, um milhão e trezentos mil escravos africanos teriam desembarcado somente na Bahia. A maioria desses escravos foi levada para o interior do país, para trabalhar nas lavouras da cana-de-açúcar, na extração de minérios e nas lavouras do café. Submetidos a exaustivas jornadas de trabalho e aos maus tratos dos capatazes, os chamados escravos de lida viviam aglomerados em senzalas. Alguns escravos, porém, foram levados para ambientes urbanos. Dentre esses, alguns trabalhavam somente nas casas dos seus senhores (escravos domésticos), e outros faziam trabalhos externos remunerados, mas davam uma cota aos seus senhores em troca de uma futura alforria (escravos de ganho).
Até hoje, há divergentes opiniões dos historiadores a respeito da forma como os escravos africanos foram distribuídos geograficamente quando chegaram ao Brasil. Boa parte dos historiadores acredita que eles foram distribuídos de maneira tal que não ficassem juntos os que falassem a mesma língua, para evitar rebeliões e fugas, mas existem, por outro lado, indícios de uma possível língua franca africana em território brasileiro que enfraquecem essa hipótese. O fato é que vários movimentos de resistência foram surgindo ao longo dos anos, culminando na formação de muitos quilombos. O termo quilombo designa, de acordo com a Constituição de 1988 (art. 68), “a comunidade originada a partir de escravos fugidos ou ex-escravos, os quais procuravam viver isoladamente, desenvolvendo práticas de resistência e reproduzindo seus modos de vida característicos num determinado lugar”. As comunidades quilombolas que se formaram em locais ermos, distantes do ambiente citadino, eram chamadas de quilombos rurais, enquanto que as comunidades quilombolas formadas nos arredores de grandes cidades, sendo mais tarde incorporadas a elas, eram chamadas de quilombos urbanos.
O quilombo mais conhecido do Brasil foi o Quilombo dos Palmares, na região de Alagoas. Originado em 1629, esse quilombo virou símbolo de resistência, derrotando cerca de 30 expedições para destruir o agrupamento. Somente em 20 de novembro de 1695, com a morte de Zumbi (líder do quilombo), Palmares foi totalmente destruído. Atualmente, o dia da morte de Zumbi é comemorado como o Dia da Consciência Negra, reverenciando a ação heroica dos palmarinos diante do poderoso sistema escravocrata brasileiro. Todavia, esse quilombo – apesar da sua representatividade na luta africana por liberdade no Brasil – foi somente um dos tantos que surgiram em território brasileiro, sendo que mais de 300 quilombos foram formados só no Estado da Bahia, dentre os quais merecem destaque os que se formaram nos arredores da cidade de Salvador.  
Um dos mais antigos da Bahia, o Quilombo do Rio Vermelho, localizado onde hoje se encontra o bairro do Rio Vermelho, teve origem em 1629. Aproveitando o clima tenso trazido pela invasão holandesa em Salvador, um grupo de escravos fugiu e procurou abrigo nas frondosas matas das terras doadas por Tomé de Souza (Governador-Geral) a Antônio de Ataíde. A comunidade perdurou até 1632, quando foi destruída pelos capitães-do-mato Francisco Dias de Ávila e João Barbosa Almeida.
Outro quilombo de Salvador foi o Quilombo Buraco do Tatu, localizado onde hoje se encontra o bairro de Itapuã. Esse agrupamento teve origem em 1744, mantendo-se isolado por quase duas décadas e, em virtude das crescentes fugas de escravos na cidade de Salvador, tornou-se uma referência no tocante à manutenção das raízes africanas e na luta contra a escravidão na Bahia, desestabilizando, de todas as formas possíveis, o sistema escravista da época. Em setembro de 1763, porém, o quilombo foi destruído por uma expedição militar, comandada por portugueses.
Não se pode deixar de falar também no Quilombo do Urubu, localizado onde hoje se encontra o bairro de Pirajá. O agrupamento teve origem em 1826, com a fuga de vários escravos africanos que pertenciam a uma sociedade secreta anti-escravagista chamada Og Boni. Esse quilombo notabiliza-se pelo fato de ter sido liderado por uma mulher e pela deflagrada intenção de fazer uma revolução política na cidade. Zeferina e os demais quilombolas planejavam a tomada da cidade de Salvador, mas a comunidade foi destruída por tropas portuguesas em dezembro do mesmo ano, após uma sangrenta luta com os negros que lutavam por liberdade.

Os dados revelados pelo IBGE não explicam uma história como essa, mas parecem ser sintomáticos e apontam, segundo pesquisadores, para o crescimento cada vez maior da autoestima dos negros brasileiros, e especialmente os de Salvador, que passaram a assumir sua verdadeira identidade étnico-racial. Assim, é possível verificar que, embora os afrodescendentes, como bem disse a presidente Dilma Rousseff, ainda sejam os que mais sofrem com o desemprego, a extrema pobreza e a violência, que tem vitimado tantos jovens nas nossas periferias urbanas, a história de luta e resistência da capital negra da América Latina está no sangue.

sábado, 10 de setembro de 2011

Os herdeiros da intolerância

Por Jurgen Souza

         Uma década depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, muita gente ainda tem tentado compreender os impactos causados na política e na economia dos Estados Unidos e do mundo como um todo, despertando um grande debate entre os estudiosos do assunto no sentido de definir se a crise econômica global de 2008, bem como a atual crise econômica norte-americana, teria alguma relação com aquele fatídico acontecimento de dez anos atrás. Além disso, há os que discutem os efeitos políticos dos atentados, enfatizando que a guerra contra o terrorismo – alimentada por americanos e europeus – teria descumprido diversos acordos internacionais, gerando uma imensa crise diplomática no seio da ONU (Organização das Nações Unidas). A reflexão que este texto se propõe a fazer, porém, envolve uma melhor compreensão a respeito da já existente intolerância religiosa que foi evidenciada de maneira mais clara a partir dos atentados.
         Não se pode negar que sempre houve, entre cristãos e muçulmanos, um discurso intolerante de ambas as partes, ainda que tanto a Bíblia quanto o Alcorão apresentem a figura de um Deus clemente, misericordioso e pacífico. Em nome de Deus, inúmeras ações violentas foram realizadas por cristãos e por muçulmanos ao longo da história, amparadas tão somente no pensamento discriminatório de que os “infiéis” – ou seja, os que não compartilham da mesma religião – deveriam ser punidos. Todavia, esse ambiente de intolerância ficou ainda mais latente após os atentados de 11 de setembro de 2001, chegando ao ponto de o então presidente norte-americano George W. Bush usar o termo “Cruzada” para a guerra contra o terrorismo, como se não soubéssemos que as Cruzadas foram um lamentável episódio da história da humanidade (entre os séculos XII e XIII) em que todos os povos que não se declarassem cristãos e aceitassem os ditames da igreja eram dominados e, por vezes, exterminados em nome de Deus.
         Os níveis de intolerância religiosa desencadeados pelos atentados de 11 de setembro de 2001 conduziram muitos especialistas no assunto a cogitar uma hecatombe religiosa, uma vez que os discursos de uns e de outros se tornaram cada vez mais ácidos. Enquanto os norte-americanos passaram a se entender como os verdadeiros representantes de um cristianismo que “deu certo” e de um Deus que demonstrava seu poder pela riqueza dos que se dizem seus seguidores – ainda que isso custasse a opressão de muitos outros povos –, os muçulmanos mais radicais foram levados a crer que Alá finalmente estava dando a eles uma oportunidade de derrotar, de uma vez por todas, o “grande Satã” que parecia impedir os povos islâmicos de se tornarem potências econômicas, demonstrando assim o poder de um Deus vingativo e opressor. Por conta desse pensamento, tanto os 2.996 norte-americanos mortos nos atentados de 11 de setembro de 2001 quanto os mais de 80.000 muçulmanos civis mortos nas guerras contra o terrorismo no Iraque e no Afeganistão foram, na verdade, vítimas de uma cada vez mais declarada intolerância religiosa.
         Apesar de serem válidos os muitos documentários e os inúmeros debates acerca das consequências perceptíveis dos atentados de dez anos atrás para a economia ou para a política mundial, não se pode fechar os olhos para o desrespeito à diversidade religiosa que o 11 de setembro de 2001 nos deixou como herança nefasta. Em virtude de tamanha intolerância é que, mesmo que pareça assustador admitir, tem sido considerado lícito desejar, planejar e executar o extermínio daqueles que não professam a mesma fé, ainda que se tente forjar uma outra legitimação mais “aceitável” para quem se recusa a enxergar o óbvio. Nenhuma sociedade verdadeiramente desenvolvida pode aceitar como naturais as amarras do desrespeito à diversidade, já que, no mundo plural para o qual o século XXI tem apontado, pensamentos e ações intolerantes para com o diferente ferem o princípio do respeito ao outro e às suas escolhas, sem o qual será impossível conviver de maneira pacífica onde quer que estejamos.  

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Um paralelo entre a reflexividade no português popular brasileiro e em algumas línguas crioulas

Por Jurgen Souza


Compreender o processo de reflexivização presente no português brasileiro não é, de fato, tarefa das mais simples, visto que muitas construções compreendidas como reflexivas parecem não apresentar características típicas de reflexividade ou, ao menos, parecem apresentar níveis de reflexividade bastante distintos. Não se pode dizer que frases como “O ladrão se enforcou”, “O copo se despedaçou” ou “O culpado se arrependeu” – só para citar alguns exemplos – explicitem o mesmo nível de reflexividade da ação verbal, ainda que a tradição gramatical insista em considerá-las indistintamente como estruturas reflexivas. Procurando explicar o surgimento do processo de variação existente nas estruturas ditas reflexivas do português brasileiro – especialmente em suas variedades populares – por meio do contato entre línguas ocorrido no período da colonização, o presente texto procurou traçar um paralelo entre as estratégias de reflexivização utilizadas no português popular brasileiro e em algumas línguas crioulas.
As línguas crioulas costumam utilizar diversas estratégias na construção das estruturas ditas reflexivas. Nos chamados crioulos do Atlântico, de acordo com o pesquisador Mikael Parkvall, existem várias estratégias de reflexivização, mas parece haver uma preferência dos falantes pelo uso de uma expressão anafórica cujo significado literal é corpo ou o nome de uma parte do corpo, como ocorre no exemplo em (1), retirado do crioulo haitiano. Segundo ele, a utilização desse tipo de expressão seria fruto da influência da língua dos povos dominados, apesar de o termo gramaticalizado ser de origem da língua do povo dominador, principalmente no caso dos crioulos de base lexical francesa.
(1)      Matant pann kor
Minha tia enforcar corpo (tradução literal)
Minha tia se enforcou
No crioulo caboverdiano, de acordo com a pesquisadora Fernanda Pratas, o contexto de reflexividade é caracterizado pelo uso da expressão anafórica kabesa, como ocorre em (2), e o contexto de reciprocidade é caracterizado pelo uso da expressão anafórica kunpanheru, como ocorre em (3), ambas resultantes dos processos de relexificação e reanálise, comuns em situações mais radicais de contato linguístico. No caso específico do contexto de reflexividade, é possível também que o aspecto reflexivo seja reforçado pela inserção de um determinante possessivo (nha; bu; di nho; di nha; si; nos; nhos; ses) antes da expressão kabesa, como ocorre em (4).  
(2)      Djon mata kabesa
João matar cabeça (tradução literal)
João se matou
(3)      Es gosta (di) kunpanheru
Eles gostar (do) companheiro (tradução literal)
Eles gostam um do outro
(4)      Djon mata si kabesa
 João matar sua cabeça (tradução literal)
João se matou
Todavia, a pesquisadora chama a atenção para o importante fato de que, quando o sujeito sintático não é simultaneamente agente e paciente da ação verbal, é comum ocorrer a não-realização da expressão anafórica ou de qualquer elemento explícito que possa evidenciar o contexto de reflexividade, como acontece em (5) e (6).
(5)      Pedru xinta Ø
Pedro sentou (tradução literal)
Pedro se sentou
(6)      Pedru perdi Ø
Pedro perdeu (tradução literal)
Pedro se perdeu
Nos crioulos do Golfo da Guiné – Santomense, Angolar, Principense e Fa d’Ambu –, de acordo com o pesquisador Tjerk Hagemeijer, existem várias estratégias de reflexivização, porém a mais recorrente delas é caracterizada pelo uso de uma expressão anafórica crioula de origem Edo[1] cujo significado literal é corpo, como ocorre no exemplo em (7) – retirado do Santomense – e no exemplo em (8) – retirado do Angolar.
(7)      So n ga mata ubwê mu
Então eu vai matar corpo meu (tradução literal)
Então eu vou me matar
(8)      Ê mata ôngê
Ele matar corpo dele (tradução literal)
Ele se matou

Como as línguas crioulas são resultantes de um processo de transmissão linguística irregular[2] mais intenso, tais estratégias de reflexivização estariam relacionadas à reestruturação gramatical ocorrida, em geral, por conta da perda de elementos gramaticais que acontece no primeiro estágio do contato linguístico, ocasionando – por meio da reanálise e da relexificação – a gramaticalização de itens originais para desempenhar as funções dos elementos que se perderam, conforme se observa nas estruturas reflexivas das línguas crioulas acima citadas, as quais utilizam um substantivo que se refere ao “corpo” ou à “cabeça” para desempenhar a função de partícula reflexivizadora.
Para os pesquisadores Dante Lucchesi e Alan Baxter, os pronomes ditos reflexivos, como são morfemas gramaticais livres, estariam entre os elementos gramaticais que se perdem nos momentos iniciais do contato entre línguas, mas, no caso do português popular brasileiro, o processo de transmissão linguística irregular ocorrido foi de tipo leve, ocasionando, ao invés da gramaticalização de itens originais, uma profunda variação dos elementos gramaticais da língua alvo na nova variedade que se formou dessa língua, conforme se observa nos exemplos em (9), (10) e (11).
(9)      Nós se encontrou na casa de Pedro.
(10)  Tiago ainda não se arrependeu-se do seu erro.
(11)  Bianca Ø casou ontem.


           Acerca dessas variantes, pode-se dizer que, nas estruturas reflexivas do português popular brasileiro, os pronomes ditos reflexivos que possuem menos valor informacional seriam mais suscetíveis ao apagamento, ao passo que os pronomes que possuem mais valor informacional seriam mais resistentes a ele. Pode-se dizer ainda que o pronome reflexivo utilizado nos contextos em que não haja concordância verbo-sujeito é, em geral, o pronome “se”, mesmo quando esteja fazendo referência à primeira pessoa.


[1] A palavra “corpo” que aparece nas estruturas ditas reflexivas de outras línguas crioulas que utilizam a mesma estratégia de reflexivização deriva sempre de uma língua europeia, como acontece, por exemplo, com o crioulo haitiano. Nos crioulos do Golfo da Guiné, porém, tal expressão anafórica tem origem Edo, evidenciando, portanto, uma clara influência do substrato.
[2] O processo de aquisição precária de uma segunda língua por uma coletividade de falantes adultos, sem instrutores ou escolas, e sua posterior socialização e nativização nessa coletividade. Em situações mais intensas, gera um a língua crioula, diferente das outras línguas que entraram em contato; em situações menos intensas, gera uma nova variedade de uma das línguas que entraram em contato, em geral da língua do grupo dominante.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Não me envergonho do evangelho, mas morro de vergonha dos evangélicos

Por Jurgen Souza

Na sua origem grega, a palavra ευαγγέλιον significava "boa notícia", "boa mensagem" ou "boa nova" e foi usada no texto bíblico para fazer referência aos ensinamentos trazidos por Jesus, considerados uma boa notícia ao povo israelita, o qual esperava há tanto tempo pelo messias que traria a salvação da qual tanto os israelitas necessitavam. Para muito além disso, a boa notícia era que Deus se importava com a humanidade e desejava relacionar-se com ela, a ponto de tornar-se humano e habitar entre nós. Todavia, as vivências da sociedade contemporânea têm propiciado distorções graves e inadmissíveis com relação ao que é, de fato, evangelho e, como já aconteceu em outros momentos da história, ações cruéis e desrespeitosas têm sido propagadas em nome de Deus, sob a suposta alegação de se estar pregando o evangelho. Foi exatamente isso que aconteceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, onde uma igreja evangélica espalhou outdoor's com mensagens bíblicas selecionadas para ofender os homossexuais, às vésperas da 7ª Parada do Orgulho Gay no município.
O pastor da igreja responsável pelos cinco outdoor's espalhados pela cidade, um deles inclusive no trajeto em que passaria a passeata organizada pelos homossexuais, assegurou que não via como provocação ou ofensa as mensagens veiculadas. Não foi o que entendeu a justiça, que ordenou a imediata retirada das mensagens e ameaçou multar a igreja em R$ 10 mil, caso a ordem não fosse cumprida. Contudo, ainda que não houvesse ofensa nas mensagens, não parece nenhum pouco respeitoso e nem mesmo prudente propagar tais ideias em meio a uma passeata que reuniria milhares de pessoas que não compartilham do mesmo pensamento. Mesmo que fosse com a melhor das intenções, uma ação como essa poderia desencadear uma retaliação até mesmo violenta, com a invasão ou a depredação de igrejas evangélicas em geral por parte dos grupos que se sentissem ofendidos.
O que é mais intrigante, porém, nesse ato de irresponsabilidade cometido por essa igreja é que quase todos os dias alguns dos líderes evangélicos mais conhecidos no país bradam aos quatro cantos que as igrejas evangélicas são alvo de perseguição e desrespeito, alegando inclusive que, se o Estado é laico, seria imprescindível respeitar a diversidade religiosa. Contraditoriamente, no entanto, é justamente do segmento evangélico que vêm as mais gritantes ações de desrespeito à diversidade e aos direitos da liberdade de expressão. Aliás, foi justamente a essa liberdade de expressão que o pastor se apegou para se justificar. Segundo ele, os evangélicos estariam apenas “aproveitando a oportunidade que eles estão divulgando a maneira de viver deles para expressar o que Deus diz a respeito”, mas não há dúvida de que um ato como esse pode ser classificado minimamente como de mau gosto e, se for levado mais a sério, configura um tremendo desrespeito ao direito de o outro manifestar sua opinião, já que, como bem disse uma das responsáveis pelo evento, “Todos os seres humanos têm direito a expressar o que quiserem, mas têm o ano todo para fazer isso. Fazer na semana da diversidade é uma maneira de ataque, não tinha essa necessidade.
O pastor da igreja responsável pelos outdoor's ainda afirmou que os evangélicos amam “essas pessoas (se referindo aos homossexuais), mas a forma que elas vivem está contrária àquilo que Deus diz”. Diante de tal afirmação, cabe questionar: por que não fazer, então, um outdoor falando desse amor? Talvez quando os evangélicos – e não falo isso me excluindo desse grupo – proclamarem mais o amor de Deus ao mundo por meio de suas ações, sendo usados como instrumento da graça redentora que alcança o outro sem precisar desrespeitá-lo, quem sabe o evangelho não seja uma “boa notícia” para essa humanidade já tão atolada em más notícias?

sábado, 6 de agosto de 2011

As aparências enganam

Por Jurgen Souza

            Um dos aspectos mais valorizados no mundo contemporâneo é a imagem. Vivemos em um tempo em que não importa muito o que você de fato é, mas sim o que você parece ser. O cotidiano por demais agitado em que estamos inseridos não nos permite desenvolver relações mais profundas e acaba nos conduzindo a enxergar o outro apenas superficialmente. Por conta disso, as relações humanas estão cada dia mais marcadas pelo preconceito (um conceito formado antes de se ter uma visão mais aprofundada), evidenciando nossa clara preferência pelas aparências.
Até mesmo – e, por que não dizer, principalmente – os cristãos, que foram orientados por Jesus a vivenciar uma dimensão mais profunda de relacionamento com o outro (João 15:12), têm optado por valorizar somente as aparências. Todavia, como podemos perceber através do filme “A luz da escuridão” – anexado propositalmente a este texto –, as aparências enganam. Infelizmente, porém, o meio cristão está repleto de pessoas que se deixam enganar pelas aparências, acreditando piamente que Deus só pode manifestar sua graça por intermédio daqueles a quem julgamos – em geral pelas evidências externas – "santos".
Por conta do preconceito religioso, acabamos limitando o agir do Deus que nós mesmos dizemos acreditar que pode todas as coisas, esquecendo-nos de que, para muito além das aparências, Ele vê o coração (1 Samuel 16:7b). O mais impressionante, contudo, é que tal atitude preconceituosa por parte de muitos cristãos revela o desconhecimento ou o não-entendimento da orientação que o próprio Jesus deu a esse respeito, como relata o texto bíblico de Lucas 10:25-37. Nessa passagem bíblica muito lida entre os cristãos, Jesus dialoga com um homem religioso que deseja saber como ter a vida eterna e é orientado por Jesus a cumprir o que a lei diz: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com todo entendimento, e o próximo como a ti mesmo”. Aquele homem religioso, sabendo que, mesmo sendo doutor da lei, não a cumpria na prática, pergunta então a Jesus como saber quem seria o “próximo” que a lei determina que devemos amar, e Jesus responde contando uma parábola (história usada para facilitar o entendimento).
A parábola usada por Jesus envolve três personagens muito conhecidos no universo religioso daquele homem: um sacerdote, um levita e um samaritano. O sacerdote era um líder religioso importante, responsável – na religião judaica – por receber a mensagem de Deus numa parte reservada do templo, chamada de santo dos santos, e depois transmiti-la ao povo. O levita era um ajudante do sacerdote, responsável por preparar o altar para os holocaustos (sacrifícios), comuns na religião judaica. O samaritano – habitante da cidade Samaria – fazia parte de um povo considerado idólatra com quem os judeus tinham uma antiga rixa (João 4:9b). Na verdade, houve um tempo em que a cidade de Samaria pertencia aos judeus, mas foi invadida pelo império assírio por volta do ano de 722 a.C., sendo que seus novos habitantes, apesar de serem de várias origens – já que o exército assírio era formado por homens de vários outros povos dominados pelo império –, passaram a ser chamados de samaritanos e, desde aquela época, passaram a ser odiados pelos judeus (2 Reis 17:24-41).   
            O relato da parábola conta que um homem vinha de Jerusalém para Jericó, mas foi assaltado, espancado pelos malfeitores e estava quase morto, caído na estrada (provavelmente todo ensanguentado e desacordado). Pelo mesmo caminho, passaram um sacerdote, depois um levita e, por último, um samaritano, mas somente este deu socorro ao homem assaltado. Os dois primeiros passantes seriam, aparentemente, os mais “santos” e dignos de serem instrumentos da ação da graça de Deus na vida daquele homem, no entanto eles fizeram questão de passar longe, talvez porque tenham colocado seus próprios interesses como prioridade, já que a lei dizia que, se o sacerdote ou o levita tocassem em um morto – e o homem estava quase morto –, seriam considerados impuros e seriam impedidos temporariamente de exercer seus cargos religiosos (Levítico 21:1-2).
O terceiro passante certamente seria, observando apenas as aparências, o que teria menos motivos para prestar socorro ao homem assaltado, porque estava de viagem em terra estranha e, principalmente, porque sabia que aquele homem era um judeu – e os judeus odiavam os samaritanos. Mesmo diante disso, aquele samaritano decidiu parar e ajudar o homem caído, prestando-lhe ali mesmo os primeiros socorros, levando-o depois para uma hospedaria onde seria melhor cuidado e deixando uma quantia com o hospedeiro para que pudesse tomar todas as providências necessárias. Perceba que, contrariando as aparências, o samaritano não levou em conta seus próprios interesses, mas investiu seu tempo, seu cuidado e seu dinheiro no nobre empreendimento do amor ao próximo.
Então, depois de contar a parábola, Jesus retoma o diálogo com o doutor da lei e pergunta qual daqueles três havia sido o “próximo” do homem assaltado, e ele – mesmo se recusando a afirmar que fora o samaritano – responde que havia sido o que teve misericórdia do homem. Jesus, demolindo todas as barreiras do preconceito que os judeus tinham a respeito dos samaritanos, afirma ao doutor da lei que, se ele quer ter de fato a vida eterna, deve fazer a mesma coisa que aquele samaritano fez. Essa afirmação contundente evidencia um Cristo que não está preocupado com as aparências religiosas, mas que deseja manifestar a sua graça ao mundo por meio daqueles que verdadeiramente abram mão dos próprios interesses em favor do outro.  

segunda-feira, 25 de julho de 2011

À espera de um desconhecido

Por Jurgen Souza
         Antes que você me pergunte, caro leitor, se é mentira ou se é verdade o que este breve relato conta, quero lhe assegurar que esse mal fadado acontecimento poderia ter ocorrido em qualquer outra igreja de classe média de nosso país, mas não é que cismou de ser justamente lá pelas bandas de Brasília! Ah, e desta vez nada tem a ver com os políticos profissionais que habitam o nosso imaginário quando ouvimos falar de tão afamada cidade!
         Foi numa dessas igrejas grandes, ricas e bonitas, cheia de gente importante e digna de nota no jornal. Uma grande notícia trouxera muita esperança e alegria a cada pessoa daquela comunidade de fé: Jesus havia voltado e estava em Brasília. Todos vestiram as melhores roupas e foram à igreja para esperá-lo chegar. Nem mesmo a fina e fria chuva daquela noite de novembro impediu – como acontecia normalmente quando o tempo esfriava – que o templo estivesse lotado. O culto, lá dentro, parecia animado. Os instrumentos, as vozes, as palmas... todos pareciam muito felizes.
         Do lado de fora, um homem negro, barbudo, maltrapilho e com uma mochila nas costas tentava entrar na igreja. Um irmão, que fazia as vezes de recepcionista, tentou convencer o pobre homem de que o templo estava lotado e que eles estavam esperando um convidado muito especial. Pela porta de vidro, era possível notar que até um tapete vermelho estava preparado para a recepção do ilustre visitante. O homem, por sua vez, afirmou que ele era o convidado da noite, mas o rapaz da recepção apenas riu, como quem não o havia levado a sério. Ainda assim, o homem continuou insistindo em afirmar que todos ali estavam esperando por ele, até que foi retirado pelo segurança por estar perturbando a tranquilidade do lugar.

        Agarrado pelo braço, ele gritava: “Eu sou Jesus! Eu sou Jesus!”. Os hinos cessaram por um instante. Cessou-se a alegria. Um momento doloroso de silêncio foi feito, enquanto todos olhavam para trás, mas ninguém o reconhecia ou, o que era ainda pior, ninguém o conhecia. Uns e outros ainda cochicharam entre si que seria mesmo um absurdo um mendigo achar que era Jesus. Poucos minutos depois, passada a confusão, todos voltaram a cantar felizes e continuaram esperando a visita de Jesus. Contam os mais velhos que esperaram por quarenta dias e quarenta noites, até que se cansaram e voltaram para casa. Alguns não esperam mais; outros ainda hoje esperam; ninguém, no entanto, parou para pensar que aquele poderia ser de fato o visitante pelo qual tanto ansiavam.  

domingo, 17 de julho de 2011

Dez ave-marias e cinco pai-nossos

Por Jurgen Souza

                 Como toda cidadezinha do interior, Bom Jardim respirava os ares da tranqüilidade. As poucas casas do lugar abrigavam gente humilde. A única praça era a da igreja, que ficava de frente para o rio. A maior riqueza daquele povo pobre era mesmo o rio. Às margens do São Francisco, qualquer um, por mais pobre que possa ser, ainda assim é rico. Muitos ali mal tinham o que comer, mas não havia um sequer que não se orgulhasse de ter nascido e crescido junto ao Velho Chico. Distante da capital, muito mais ainda do progresso, perdida no sertão baiano, nem luz elétrica havia na cidade. As noites eram iluminadas pelos candeeiros de querosene. Mas o céu, sempre limpo, era o maior espetáculo noturno. As estrelas e, vez em quando, a lua bailavam cintilantes num convite ao romance. Foi ali que conheci o primeiro e único amor da minha vida.
            Eu era ainda uma menina de quinze anos. Bons tempos aqueles! Meu pai era um simples pescador e minha mãe não sabia fazer outra coisa se não cuidar da casa. Morávamos numa casinha de três cômodos – quarto, cozinha e banheiro – feita de taipa. Éramos só eu e eles. Depois de mim, minha mãe não conseguiu mais ter filhos. Éramos pobres, mas nunca nos faltou alimento; comíamos o que o Velho Chico nos dava, e ele sempre nos dava algo. Meu tempo era dividido entre ajudar minha mãe com as tarefas de casa e os estudos na escola. Meus pais não queriam que eu fosse como eles, analfabetos, por isso faziam das tripas coração para me dar ao menos caderno, lápis e borracha. Era o que o parco dinheirinho dava para comprar.
            Ele tinha o dobro da minha idade. Era um forasteiro que se encantou com as lendas ribeirinhas e acabou ficando. Lembro-me com detalhes do dia em que chegou à cidade. Foi num fim-de-tarde do mês de dezembro. Posso até ouvir o vapor apitando na chegada ao cais. Quando o vapor chegava, era um alvoroço só. As crianças todas sempre queriam visitar o barco. Rapazes e moças corriam para a praça, curiosos para conhecer gente nova. Mas meu pai nunca me deixava ir. Dizia que não era coisa para moça de família. Foi da janela lá de casa que o avistei, de longe, pela primeira vez. Estava indo em direção à pousada de dona Mariazinha, a única da cidade. Era um historiador recém-formado, mas, como ninguém sabia o que era isso, todos o chamavam de professor. E foi o que ele acabou sendo quando decidiu ficar. Ensinava história no colégio da cidade. A já comum falta de livros didáticos não foi problema para ele; nunca precisou deles. Ensinava àquele povo uma história que livro nenhum contava: a deles. Foi ele também que deu a idéia de comprar lamparinas a gás para que pudesse ter aula à noite. Em pouco tempo, Eduardo havia se tornado uma das pessoas mais queridas da cidade.
            No meu primeiro dia de aula com ele, passei o tempo inteiro apreciando sua beleza. E esse não era um privilégio meu. Todas as meninas suspiravam por ele. Mas foi num dia ensolarado de domingo, quando voltava da beira do rio – havia ido apanhar uns peixes que meu pai pescara para o almoço –, que tudo começou. Vinha tão distraída com o balaio de peixes que não o vi aproximar-se. Quando ele falou meu nome, perdi as forças e os peixes caíram ao chão. Ele, gentilmente, restituiu-me os peixes ao balaio. Ficamos nos olhando silenciosamente, por alguns segundos, até que lhe disse que minha mãe estava à minha espera para terminar o almoço. Daí para nosso primeiro encontro, ainda se passaram alguns meses. Eu não era uma moça espevitada, e ele era muito discreto.
            Encontramo-nos, por fim, ao raiar do dia. Ele havia deixado, no dia anterior, um bilhete na minha carteira, junto à prova. Eu tive que dizer à minha mãe que estava indo para uma aula de educação física. O local do encontro era debaixo de um velho cajueiro, perto de um campinho de futebol. Tremia como bambu, mas bastou que ele segurasse minha mão para devolver-me a tranqüilidade. Como não sabia muito bem o que dizer numa hora como aquela, pedi-lhe um beijo. Nunca havia beijado alguém antes, e a sensação foi a de ter nascido exatamente naquele instante. E nasci mesmo; para a vida, para o amor. Os encontros, pouco a pouco, foram-se tornando habituais, mas, à medida que o tempo passava, precisávamos de um lugar reservado, longe dos olhos e da língua afiada de todos. Ele, então, resolveu sair da pousada e alugou uma casa perto da minha, para facilitar as coisas. Estávamos apaixonados um pelo outro. Eu talvez demonstrasse mais, muito mais.
            Nada, porém, parece ter marcado mais minha vida do que a primeira vez que fizemos amor. Eu era totalmente inexperiente. Nunca nem havia conversado sobre essas coisas com ninguém. Tinha medo de engravidar ou adoecer ou qualquer outra coisa. Tinha medo de doer – ouvi, certa vez, escondida atrás da porta, minha mãe dizendo à comadre Sininha que doía e muito. Mas ele me explicou tudo com paciência e me disse que só faria quando eu lhe pedisse. Eu quis por diversas vezes, mas nunca lhe pedi, até que um dia o calor do corpo falou mais alto e praticamente supliquei. Pode parecer até heresia dizer isto, mas foi divino. A partir de então, não havia um encontro em que eu não fosse assim toda dele e ele assim todo meu.
            Certo dia, ao término do encontro, ele contou-me a respeito dos comentários que havia escutado sobre nós. Estava preocupado com minha reputação, afinal eu era moça de família e meus pais não faziam idéia do que estava acontecendo. Afirmou que seria difícil, mas que talvez fosse melhor que ficássemos algum tempo sem nos encontrar. Se os falatórios continuassem e chegassem aos ouvidos do meu pai, poderia suceder uma desgraça. Confortou-me num longo abraço, dizendo-me que eu era forte e que não tardaria para que as coisas se acalmassem e voltássemos a nos ver. Despedi-me, então, com os olhos lacrimosos, mas com a esperança de que, apesar de penosa, a distância não seria duradoura. Ademais, o que ele me havia dito parecia ser mesmo verdade, pois minha mãe e até meu pai vieram-me com umas perguntas estranhas, que, a princípio, não me denunciavam, mas poderiam ser indícios de desconfiança.
            O que jamais poderia imaginar, porém, era que sofreria tanto com essa separação. Sem vê-lo por tantos dias, comecei a entristecer-me deveras. A tristeza, com o tempo, tornou-se em mal-estar. Os enjôos se sucediam um ao outro, até que, dando-me por conta, percebi que estava grávida. Gerava em meu ventre o fruto do nosso amor. Essa descoberta, no entanto, deixou-me apreensiva. Meus pais não poderiam saber, não tinha ninguém com quem pudesse me aconselhar, tampouco sabia o que fazer. Não me restava outra possibilidade, se não procurá-lo para encontrarmos uma saída para a situação.
            Fui, então, à sua casa, não para mais um encontro amoroso, mas para decidir o destino de minha vida. Todavia a cena que presenciei traçou, em questão de segundos, todo o meu destino. Eduardo estava nos braços de outra aluna do colégio, talvez lhe dizendo todas as palavras doces que um dia me disse ou ensinando-lhe o caminho da felicidade, como ensinou a mim. A dor insuportável que senti fundiu-se ao ódio visceral que emergia de mim, tornando-me ensandecida. Sem que fosse vista por eles, apossei-me da peixeira que estava na cozinha e invadi o quarto, golpeando-lhe o peito. A moça, coitada, desmaiou de medo. Enquanto ele agonizava no que havia sido o nosso leito de amor, contei-lhe, sussurrando ao ouvido, sobre a gravidez. Mas não permiti que dissesse palavra. Virei as costas e fui embora. Sequer voltei em casa; cortei caminho por entre os matos e cheguei à estrada.
            Não foi fácil, para mim, guardar esse segredo durante todos esses anos. Hoje, Bom Jardim já não é mais tão pequena e tranqüila assim. O progresso há muito já chegou por lá. Mas eu precisava ao menos desabafar com alguém, retirar dos meus ombros o pesado fardo que carrego comigo desde que vim embora. Confesso que matei o único homem que amei de verdade em toda a minha vida, mas não me arrependo. Se tivesse de matá-lo novamente, não hesitaria. Meu maior pecado, porém, e essa é a culpa que carrego, é que matei a mim mesma. Acabei, de uma vez por todas, com qualquer possibilidade de ser feliz. Estou viva porque ainda respiro, mas no fundo, no fundo não é assim que me sinto. Estou preparada para pagar pelo que fiz. E para encerrar logo este assunto, diga-me, padre, qual será minha penitência?

domingo, 10 de julho de 2011

Álbum de Família

Por Jurgen Souza

            A vida corrida da cidade grande muitas vezes nos impede de enxergar o outro. Estamos quase sempre tão apressados que acabamos por nos tornar egocêntricos. Um único momento, porém, que pararmos para observar à nossa volta, certamente nos surpreenderemos com as histórias que desfilam estampadas em cada rosto nas movimentadas avenidas, nas intermináveis filas do banco ou nos vagões lotados do trem. Foi uma dessas histórias marcantes que mudou minha vida e abriu meus olhos para o fato de que as pessoas são muito mais do que parte de um cenário que compõe uma metrópole como São Paulo.
            Fazia vinte anos que eu trabalhava na Estação da Luz. O cotidiano agitado daquela velha estação de trem era fatigante. Milhares de pessoas passavam por ali todos os dias. A bilheteria, sempre lotada, consumia meu tempo e minhas forças. O período de descanso era curto e destinado unicamente ao almoço, que trazia pronto de casa, para economizar o vale-refeição. Sabe como é, vida de pobre é assim: faz-se de tudo para poupar uns trocados e tentar encher o carrinho no supermercado. Casado, com dois filhos, morava na Vila Prudente, numa casinha erguida com muito suor e com a ajuda de minha esposa, que costurava para fora. O que ganhava era pouco, mas ao menos era dinheiro certo.
            Havia na estação uma senhora que passava o dia sentada num banco, como a esperar um trem. Estava ali há mais de cinco anos. Todos a chamavam de louca, mas eu me limitava a ignorá-la. Durante todo esse tempo, muitos boatos surgiram entre os funcionários a respeito daquela mulher. Hipóteses das mais diversas foram levantadas sobre sua história de vida, entretanto ninguém jamais ousou aproximar-se dela. Quando um ou outro colega perguntava minha opinião, respondia que tinha muito mais coisas a me preocupar e que pouco me importava se era uma prostituta ou a rainha da Inglaterra.
            Tempos mais tarde, acabei cedendo à curiosidade. Num daqueles dias em que estamos mais interessados em bisbilhotar a vida alheia do que em trabalhar, a imagem daquela mulher não me saía da memória. Durante o almoço, passei alguns minutos a observá-la. Era uma senhora de seus setenta anos, cabelos grisalhos e longos, um tanto alta e magra. Usava um vestido velho de chita e trazia consigo uma bolsa. Passava quase todo o tempo sentada no banco, mas, de quando em quando, levantava-se e punha-se a andar de um lado para o outro. Depois, voltava e se assentava novamente. Por um instante, tirou da bolsa um papel que aparentava ser uma carta e debruçou-se na leitura, porém não demorou a guardá-lo outra vez.
            Terminado o meu horário de almoço, voltei ao trabalho, mas parecia ainda mais interessado na história da mulher. Passei a tarde imaginando mil e uma coisas, entretanto nada comentei com os colegas. Não queria que ninguém soubesse desse meu súbito interesse por aquele caso. Foi difícil até me concentrar no trabalho, pois minha mente já estava tomada pela curiosidade. Estava decidido a buscar uma aproximação e, quem sabe, conversar com ela. O tempo, porém, parecia custar a passar, o que me deixava apreensivo. Temia não a encontrar quando saísse da bilheteria. Era um temor sem motivo, porque sabia que, na verdade, ela não sairia de lá. Mesmo assim temia.
            Enfim, os ponteiros do relógio cravaram cinco horas, e pude sair à procura de respostas às minhas indagações. Desci rapidamente as escadas de acesso à plataforma, buscando com meus olhos identificá-la no meio da multidão que entrava e saía do trem, naquele horário de tanto movimento. Só depois que o trem partiu é que a avistei, sentada no mesmo banco, que já era tão seu, balbuciando algumas palavras aparentemente sem nexo. Cuidadosamente me aproximei e sentei ao seu lado. Passei ainda alguns instantes calado, sem saber como iniciar uma conversa, até que tomei coragem e iniciei o diálogo.
            –– A senhora está esperando um trem?
            –– Aqui tem mais gente que trem, moço.
            –– Ah, então está à espera de alguém?
            –– Meu marido pediu para que eu esperasse aqui.
            –– E a senhora não tem outros parentes, não?
            –– O senhor é da polícia, é?
            Aquela pergunta deixou-me tão sem jeito que, aproveitando a chegada de um trem, levantei-me imediatamente e embarquei. Fui o trajeto todo pensando na situação daquela senhora. Estava ali há tanto tempo. Será que tinha onde dormir, o que comer? Um raro sentimento de piedade começou a brotar em mim, mas logo me refiz e voltei à minha condição de homem embrutecido pela dureza da vida. Não tinha nada que me preocupar com uma velha louca, que estava há cinco anos esperando um marido que eu nem sabia se existia mesmo. Havia muitos problemas que necessitavam de solução urgente, e eu ali a desperdiçar meu tempo com essas histórias!
            Desci do trem na Estação São Caetano e fui andando para casa. Os trinta minutos de caminhada eram já habituais, mas sempre aproveitava para refletir um pouco sobre minha vida. Lembrei-me de meu pai. Ele morrera de câncer há alguns anos. Estava muito doente, porém não tínhamos como pagar um hospital particular, e o público não tinha vagas para internação. Morreu em casa mesmo, contando somente com nosso carinho e apoio. Gastamos tanto com remédios que até hoje ainda luto para pagar as dívidas. Estava preocupado, também, com os estudos dos meninos; estudavam em escola pública, mas era janeiro e tinha uma extensa lista de material escolar que deveria ser comprado. É, a situação não era das melhores!
            Cheguei em casa exausto. Minha esposa indagou-me por que a demora, afinal já eram quase oito da noite. Disse-lhe que havia ficado de conversa com um colega de trabalho e não percebi o tempo passar. Ela resmungou um pouco, deixando-me impaciente. Nada que um bom banho não resolvesse. Ao sair do banheiro, parecia estar mais leve, menos irritadiço, e pudemos, então, jantar tranqüilamente em família. Os meninos foram-me por diversão após o jantar, enquanto tentávamos montar um quebra-cabeça que lhes havia dado de presente no natal. Não demorou e já era hora de dormir. O despertador tocaria às seis da manhã, tirando-me da cama para mais um dia de trabalho.
            Deitei-me ao lado de minha esposa e dei-lhe um abraço, como quem pede desculpas. Recebi dela um beijo que me pareceu selar as pazes. E assim, abraçadinhos, passamos um bom tempo. Eu tentava dormir, no entanto a mente teimava em ocupar-se com pensamentos desnecessários. Era a história daquela senhora que me atormentava de novo. Virei de um lado a outro da cama, mas definitivamente não conseguia dormir. O corpo cansado exigia um descanso; a mente rebelde, porém, insistia em desobedecer. Quando enfim peguei no sono, fui acordado com o barulho irritante do despertador.
            Levantei sonolento, tomei o café que minha esposa preparou, peguei a marmita para o almoço e fui trabalhar. Aquela sexta-feira não começou muito bem, mas pelo menos era o último dia de trabalho da semana. Na bilheteria da estação, o tempo andava num ritmo amuado, enquanto o trabalho se dava de modo cansativo. Era um dos dias de maior movimento na Luz. Durante o almoço, fui tentado a espiar a velha senhora, mas consegui conter minha curiosidade, o que não aconteceu quando o expediente deu-se por encerrado.
            Não foi fácil vencer a vergonha, depois da frustrada tentativa de aproximação do dia anterior. Fiquei, primeiramente, observando-a de longe e preparando uma forma de iniciar a conversa sem inibi-la, como ocorreu antes. Era, de fato, uma situação delicada, mas precisava matar minha curiosidade, e não haveria nada que me impedisse de fazê-lo. Por isso, tomei a iniciativa de me aproximar e puxar conversa.
            –– Boa tarde! Quero lhe pedir desculpas por ontem. Estive aqui conversando com a senhora, mas acabei por ir embora sem me despedir, lembra?
            –– Lembro. O moço da polícia...
            –– Não, eu não sou da polícia. Na verdade, sou alguém que está preocupado com a senhora. Não precisa ter medo, pode confiar em mim.
            –– Tem palavra, moço, que a boca da gente inventa só pra confundir a cabeça.
            Querendo me desviar daquela afirmação tão contundente, imendei a conversa, de supetão, com outra pergunta.
            –– Como é seu nome?
            –– Antonieta.
            –– Faz tempo que a senhora espera seu marido?
            –– Pra mais de cinco anos.
            –– Onde a senhora dorme e faz as refeições?
            –– Como o que um ou outro passageiro me dá e durmo aqui mesmo, neste banco. Não conheço ninguém na cidade, a não ser meu marido.
            –– Seu marido ainda vem?
            –– Um dia ele vem!
            –– Às vezes, vejo a senhora com uma carta na mão. É do seu marido?
            –– Não. É uma carta que escrevi a meu filho. Meu marido o tirou de mim ainda muito novinho e veio pra cá. Depois de muitos anos, ele escreveu para uma vizinha dizendo que eu viesse ver meu filho e mandou que esperasse aqui.
            –– Posso ler a carta?
            Ela retirou da bolsa aquele papel amarelado e entregou-me com um cuidado de quem teme ser roubada. As letras mal traçadas e os vários erros gramaticais não diminuíam o amor materno que me levou às lágrimas ao término da leitura. Na carta, ela dizia ao filho que não se preocupasse, pois não iria deixá-lo como bezerro desmamado. Dizia ainda que o amava e que amor de mãe não mede tempo nem espaço. Emocionado com aquelas palavras que nunca escutara na vida, não contive o choro. Meu pai falava pouco de minha mãe; dizia que ela havia morrido no parto e que eu era a única coisa boa que deixara.
            Tomado por um sentimento de filho que me invadiu o peito naquele instante, convidei-a para passar o fim-de-semana em minha casa. Ela, porém, disse que não poderia, pois tinha de esperar o marido. Disse-lhe, então, que seu marido não viria mais. Essa revelação deixara dona Antonieta em completo desespero, uma vez que a esperança de reencontrar o marido e o filho era o que a impulsionava a viver. Ela se apegara ao tênue fio da esperança para não cair no abismo da esquizofrenia, e agora eu o havia partido de vez. Seu silêncio só foi quebrado com a resposta positiva ao meu convite, mas logo foi retomado.
            Fomos calados até em casa. Quando cheguei, contei toda a história à minha esposa, e ela também se comoveu. Conseguimos um colchão e umas roupas usadas com a vizinha. Dona Antonieta tomou banho, como há muito não fazia, e jantou conosco à mesa. Não deu uma palavra durante o jantar, mas bastava olhar o seu rosto para perceber que o abatimento e a desilusão se faziam presentes. Colocamos o colchão em que dormiria no quarto dos meninos. Antes de deitar-se, porém, ela agradeceu a hospitalidade, deu-me um abraço afetuoso e disse que toda mãe gostaria de ter um filho assim. Eu, emocionado, disse-lhe que todo filho também gostaria de ter uma mãe como ela. Fui dormir ainda com a doce sensação daquele abraço materno que me enchia de uma felicidade indescritível.
              No dia seguinte, acordei tarde, afinal era sábado e precisava descansar após uma semana intensa como aquela. Dona Antonieta ainda dormia; deveria estar mesmo muito cansada. À hora do almoço, resolvi acordá-la, chamando-a da porta do quarto. Ela, entretanto, não esboçou reação. Entrei no quarto, aproximei-me e chamei-a, sacudindo-lhe o braço. A velha senhora estava morta, e eu nada poderia fazer para acordá-la. Refeito do susto, decidi, então, vasculhar sua bolsa à procura de documentos que pudessem ser úteis para conseguir um atestado de óbito, mas qual não foi a minha surpresa? Lá estavam a identidade, a certidão de casamento e a certidão de nascimento do filho. Custei a acreditar no que os meus olhos viam. Aquele foi, certamente, o momento mais importante da minha vida. Na verdade, seu nome era Aurora; seu marido se chamava Pedro; e seu filho era eu.