sexta-feira, 24 de junho de 2011

A participação da igreja local no desenvolvimento de uma cultura de paz

Por Jurgen Souza

O debate cada vez mais atual sobre a necessidade de se estabelecer uma cultura de paz que avance de contextos específicos para contextos gerais aponta, inevitavelmente, para a cruel realidade da violência existente em nosso país. O Brasil exuberante, rico em paisagens naturais e em diversidade cultural, também figura no cenário internacional como um país tomado pela violência. O imaginário coletivo, no entanto, parece associar, quase que imediatamente, as situações de violência a Rio de Janeiro e São Paulo, por conta da sua super-exposição na mídia nacional, mas tal realidade atinge também as pequenas cidades e outros centros urbanos país afora. Um exemplo disso é a cidade de Salvador, que teve o maior crescimento da taxa de violência entre as capitais do país, registrando um aumento de 79% nos homicídios entre os anos de 2006 e 2008, de acordo com a própria Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia.
Discutir a respeito da formação de uma cultura de paz é, antes de tudo, refletir sobre a violência, buscando entender suas causas e, nesse intuito, alguns estudos demonstraram que, apesar de não ser a única causa da violência, a desigualdade social certamente serve de impulso para ela, sendo os problemas sociais decorrentes da organização capitalista da sociedade os maiores causadores do aumento da violência nos últimos anos. A Unesco, em 2000, lançou um manifesto por uma cultura da paz, no qual se veiculam ideias consensuais que apontam para a necessidade da construção de uma ambiência que possa permitir aos homens uma vida pacífica, incluindo necessariamente a participação da igreja na propagação dos valores essenciais à consolidação desse ethos de paz, engajando-se na tarefa de conduzir os indivíduos a desejarem a formação desse ambiente e a se comprometerem com essa causa.
Como propõe a Campanha Global de Educação para a Paz, lançada em Haia, em 1999, o estabelecimento de uma cultura de paz deve fazer parte do cotidiano eclesiástico, figurando entre os temas debatidos e as ações desenvolvidas pelas igrejas. A proposta afirma que, nesse sentido, seria papel da igreja criar referenciais não-violentos, fortalecer conexões comunitárias, formar consenso para a paz, capacitar pessoas para a mudança pela paz, promover justiça e o fim das desigualdades sociais, oportunizar vivências plurais para além dos preconceitos e estereótipos, instrumentalizar para a resolução não-violenta de conflitos, ajudar a lidar com a agressividade, e desenvolver uma crítica à cultura de violência.
Na contramão de tudo isso, porém, as igrejas cristãs protestantes parecem estar, em sua maioria, fechadas em si mesmas, disseminando a crença de que a violência teria causas essencialmente espirituais. Mais do que um posicionamento religioso, essa atitude ensimesmada produzida pelo protestantismo seria, numa análise weberiana, uma clara postura de apoio aos comportamentos que norteiam a sociedade capitalista, formadora de desigualdades. Os discursos e as práticas eclesiásticas adotadas por muitas dessas igrejas reproduzem, na verdade, o individualismo exacerbado para o qual o ideal capitalista conduz, na tentativa de evitar a instauração da solidariedade entre comunidades atingidas pela desigualdade social e, consequentemente, pela violência. Fazendo-se uma retrospectiva ao período de surgimento do cristianismo, é possível perceber uma clara diferença entre essa postura isolacionista das igrejas cristãs protestantes da atualidade e a postura adotada pelas igrejas cristãs do primeiro século, ou pelo próprio ministério de Cristo ou, até mesmo, pelas sinagogas judaicas do período de Jesus.
As chamadas igrejas primitivas buscaram estabelecer uma comunidade que se importava com o próximo, que repartia suas posses a fim de suprir as necessidades uns dos outros, dedicando-se a cuidar dos necessitados de modo justo e equânime e desenvolvendo o pensamento de que os que têm em abundância deveriam compartilhar com os que nada têm, para que todos pudessem viver de maneira digna e em paz uns para com os outros.  O ministério de Cristo, antes disso, já mostrava o caminho do envolvimento com o outro e com suas mazelas, pois a proclamação do evangelho acontece, de fato, justamente nessa opção pelo envolvimento com as causas dos menos favorecidos. Antes mesmo de Jesus, as sinagogas judaicas, por mais excludente que pudesse ser aquela sociedade, também não estavam interessadas apenas na realização do culto, servindo – numa atitude de envolvimento com a comunidade – como escola durante a semana, ajudando na educação de jovens e crianças.
Para que haja, de fato, uma cultura de paz, o conceito de igreja precisa mudar. Uma igreja comprometida com a paz pensa o espaço eclesial como parte da comunidade em que ela está inserida e posiciona-se como uma instituição da qual toda a comunidade faz parte, mesmo aqueles que não são cristãos. A participação de todos no processo eclesial ocorre no envolvimento com as ações pedagógicas da cultura da paz, tornando a igreja uma instituição aglutinadora e promotora do desenvolvimento dessa comunidade. Não se trata aqui de uma visão ingênua, como se a igreja, por si mesma, tivesse o poder de resolver o problema da violência, mas o que se deseja é que ela faça parte desse processo, uma vez que, se a violência é causada por múltipos fatores, sua solução exige ações integradas de múltiplos agentes dentro da comunidade.
Uma igreja que deseja participar ativamente do desenvolvimento de uma cultura de paz na comunidade da qual faz parte precisa inverter as prioridades. Urge repensar a forma como a igreja cristã tem proclamado o evangelho de Jesus Cristo em meio a um povo tão sofrido, tão alijado de seus direitos mais essenciais e que, por vezes, encontra na criminalidade a única forma de sobrevivência nesse mundo cruel que nós ajudamos a criar. Assim, o principal objetivo da proclamação das boas novas deve ser revelar Deus à humanidade, sabendo que tal revelação só se dará, de fato, no envolvimento com o outro e com os dilemas que o cercam. Sem isso, proclamar o evangelho será algo inútil ao reino de Deus e servirá – como infelizmente tem servido na atualidade – apenas como discurso legitimador da opressão e da exploração humana, do qual se apropria uma meia dúzia de gente interesseira e gananciosa, no intuito de se auto-promover e enriquecer ilicitamente.
A participação da igreja local na construção de uma cultura de paz é imprescindível, mas a igreja cristã, em especial o segmento dito protestante, precisa entender melhor sua verdadeira missão, engajando-se nessa causa que, certamente, é parte indissociável da causa do próprio Cristo. Não há sentido algum em a igreja fazer qualquer coisa que não seja orientada por e para a transformação real das vidas que pretende atingir com o evangelho. Em última instância, a caminhada de envolvimento com esse processo de mudança da realidade ao nosso redor acaba por nos revelar mais sobre Deus e permite que Ele estabeleça conosco uma relação que nos conduz a uma vida abundante, verdadeiramente plena, dignamente humana, como ele mesmo desejou em nossa gênese.