terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O papel social da igreja contemporânea à luz do movimento anabatista

Por Jurgen Souza


Uma prática religiosa que não nos conduza ao envolvimento com o outro e suas mazelas não pode, em hipótese alguma, revelar Deus ao mundo, pois que Ele só se revela no ato genuíno de comunhão. Diante da profunda apatia social que caracteriza as igrejas cristãs contemporâneas, especialmente as do segmento evangélico, urge repensarmos a forma como as instituições eclesiásticas têm se envolvido com as mazelas que atingem as minorias sociais do mundo pós-moderno, mas qualquer reflexão séria a esse respeito acabará nos levando de volta ao movimento anabatista, um momento da história da igreja quase desconhecido pelos cristãos de hoje. Todavia, para uma melhor compreensão dos valores que nortearam os anabatistas, é importante retroceder ao pensamento do reformador suíço Zwínglio.
Zwínglio nasceu em 1484 na suíça e cresceu no seio de uma família rica e conceituada. Estudou em Viena e Basileia, onde recebeu uma formação humanística bastante ampla, o que explica a forte influência de Erasmo para sua visão de mundo. Não chegou a concluir formalmente os estudos teológicos, mas ainda assim foi ordenado sacerdote e assumiu a paróquia de Glarus, sendo convocado em 1518 para ser sacerdote na catedral de Zurique. Somente a partir daí é que sua atividade reformatória tem início, influenciada pela leitura dos autores clássicos antigos, dos Pais da Igreja, de Agostinho, de Paulo e, é claro, do Novo Testamento. Sob a influência pacifista do humanismo, o sacerdote Zwínglio considerava pecado o fato de os suíços se oferecerem como mercenários a potências estrangeiras, mas o curioso era que o próprio Zwínglio tinha atuado como mercenário alguns anos antes, em troca de uma pensão anual que recebia do papa. Sua mudança de pensamento também o levou a abrir mão da pensão papal.
Apesar de ter lido todos os escritos de Lutero, não se considerava seu discípulo, divergindo dele em muitos sentidos, mesmo porque a Suíça de Zwínglio era bem diferente da Alemanha de Lutero no aspecto político, social e filosófico, o que influenciava, sem dúvida, no modo de se fazer teologia. Diferente de Lutero, sua separação de Roma foi bem mais fácil e radical, mas isso não quer dizer que a Reforma na Suíça tenha sido menos complicada que na Alemanha. Em Zurique, a reforma foi lenta, pois Zwínglio não podia se dar ao luxo de ser visto como aliado do excomungado e banido Lutero, mas nem por isso suas pregações deixaram de ter consequências. Suas propostas de reforma do canonicato repercutiram no fato de os bens e as rendas da igreja serem colocados a serviço da política social da cidade, atendendo pobres e necessitados. A maior repercussão, porém, ficou por conta de suas pregações contra as leis cerimoniais. Suas críticas às práticas quaresmais, por exemplo, culminaram com o episódio conhecido como “linguiçada”, que acabou lhe rendendo um processo disciplinar e sua consequente renúncia às funções sacerdotais.
Mesmo não sendo sacerdote, Zwínglio continuou pregando, pois o conselho – órgão administrativo da cidade – criou para ele o ministério da pregação do evangelho, estando agora a serviço não mais do clero católico e sim da administração pública de Zurique. Foi através do conselho que Zwínglio pode propagar, de forma mais rápida e mais radical, os pensamentos reformistas. Em 1523, ele desenvolveu sua teologia em 67 “conclusões”, as quais formavam o fundamento dogmático da nova igreja. A partir de então, comunidade cristã e comunidade civil eram praticamente a mesma coisa, uma vez que, para Zwínglio, igreja e Estado eram um só. Essa “teocracia” zwingliana procurava se orientar pela Bíblia, a qual serviu de critério para a reforma da missa, retirando do culto tudo que pudesse propiciar a sensação de salvação: música de órgão, canto coral, ornamentação, altar e imagens. Mais tarde, o conselho também facultou o matrimônio aos sacerdotes, beneficiando o próprio Zwínglio, que se casou com a viúva Anna Reinhart em 1524. Assim, era possível perceber que o curso da Reforma suíça não podia ser mais detido.
Todavia, dentro do próprio movimento reformista liderado por Zwínglio começaram a surgir fortes críticas à sua teologia, pois alguns de seus adeptos acreditavam que as reformas não tinham avançado o suficiente. A principal crítica era a de que, se a igreja agora estava liberta do jugo romano, estava submetida ao jugo do Estado. Esses descontentes foram chamados de “entusiastas” ou de “anabatistas” e procuraram alternativas para uma igreja carente de mudanças. Faziam oposição a Roma, mas também não estavam totalmente aliados a igrejas da Reforma luterana e ao emergente calvinismo, pois não aceitavam a união de igreja e Estado, ou de comunidade e burguesia. Assim, os anabatistas traziam elementos da teologia e piedade medievais, das teologias de Lutero, Zwínglio e de Calvino, mas não podiam ser considerados nem católicos nem protestantes, sendo os grupos que compunham tal movimento unânimes mesmo somente no ataque aos abusos eclesiais que tiravam a credibilidade da fé cristã e na crítica ao batismo de infantes.
No seu início, o anabatismo era um movimento dinâmico, religioso e sociorrevolucionário, por meio do qual se buscava a liberdade radical na igreja e na sociedade. As decepções com Zwínglio e com o conselho de Zurique conduziram os anabatistas ao rompimento com a igreja oficial e a aliarem-se com os camponeses, até porque eles almejavam mais que uma reforma da igreja, mas uma reforma da sociedade. Seu modelo eclesiológico passou a ser o da minoria num mundo de maiorias. Contudo, depois da catástrofe dos camponeses, os anabatistas passaram a ser um grupo pequeno e que acabou se definindo como movimento reformatório em 1527, com a criação da Associação Fraterna, na qual encontramos as afirmações básicas dos anabatistas: batismo de fé, excomunhão, negativa ao juramento, negativa à prestação de serviço militar, comunidade formada pelos verdadeiramente crentes, livre eleição de pastores, a Santa Ceia como expressão da comunhão cristã e separação do mundo. O que se percebe, a partir de então, é que o movimento anabatista desejava se separar do mundo (igreja versus sociedade), transformando-se num protótipo de sociedade melhor. Essa separação seria também a separação em relação às anteriores aspirações sociorrevolucionárias, mas isso não fez com que o distanciamento em relação aos camponeses fosse radical. Houve, na verdade, uma reinterpretação das exigências sociorrevolucionárias, e novamente camponeses e anabatistas estava unidos pela livre escolha de pastores, negando-se a pagar o dízimo (que estava sendo administrado pelos líderes políticos do conselho de Zurique) e negando-se a jurar obediência à autoridade civil.
 Entre os grandes nomes do movimento anabatista, alguns merecem destaque por conta da influência de suas ideias. O pensamento de Hans Hut refletia a respeito da purificação interna do ser humano, dando continuidade aos pensamentos místicos de Thomas Müntzer (ao lado do qual ele lutou na ocasião da derrota dos camponeses) e ganhando muitos adeptos, principalmente entre os desiludidos com a catástrofe campesina. Jakob Huter, ao contrário de Hans Hut, difundiu a necessidade de se viver o anabatismo em comunidade, fazendo da comunhão de bens dos primeiros cristãos a base para um estilo de vida que erradicou o analfabetismo e até mesmo se tornou um modelo de sucesso econômico. Pilgram Marpeck, por sua vez, rejeitou o profundo dualismo entre igreja e mundo, típico da maioria dos anabatistas, pois acreditava que deveria haver colaboração entre cristãos e comunidade civil, desde que não fossem colocadas em xeque a liberdade e a obediência em relação ao evangelho. Já o alemão Melchior Hoffman propagou um anticlericalismo agressivo e posições espiritualistas, especialmente na interpretação da doutrina eucarística, formando um grupo de pessoas com as quais buscava alcançar a pureza interna e a certeza da fé. O anabatismo ganhou, porém, uma nova identidade através de Menno Simons, que difundiu a ideia de que o cristão deveria se afastar de sua vida carnal e a igreja também deveria se afastar do que é pecaminoso nesse mundo, abandonando, assim, a agressividade sociorrevolucionária dos primeiros momentos, em busca de uma pureza espiritual que a impedia de se envolver com as questões sociais. 
Infelizmente é esse mesmo pensamento por demais espiritualista e pouco interessado em transformações sociais que impera na igreja cristã contemporânea, evidenciando uma atitude omissa que a torna cúmplice do sistema opressor em que vivemos na sociedade pós-moderna. Se seria anacronismo imaginar, nos dias de hoje, um retorno ao pensamento sociorrevolucionário do movimento anabatista, é inegável a necessidade premente de uma mudança na postura das instituições eclesiásticas em relação ao papel que elas devem assumir como possíveis agentes de transformação social na comunidade da qual fazem parte.  

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Bahia, Bahia, que lugar é esse?

Por Jurgen Souza

Em meio ao tormento que a população baiana, destacadamente os moradores de Salvador, tem vivido por conta da greve da Polícia Militar, é preciso que tenhamos a sensatez de fazer uma reflexão séria e sem partidarismos para compreendermos, de fato, os elementos que estão envolvidos nessa batalha entre os grevistas e o governo do Estado da Bahia. É inegável que, ainda que as pautas reivindicatórias sejam justas, uma mobilização de repercussões nacionais e internacionais como essa não parece estar firmada tão-somente no interesse da categoria em conseguir melhorias salariais ou mesmo de trabalho. Basta uma pequena pausa para revirar o baú da história recente da política baiana e brasileira para se verificar o sórdido jogo de interesses que salta lampejante para o primeiro plano do conflito. Retrocedamos há pouco mais de uma década e compreendamos os fatos.
No começo dos anos 2000, o grupo reunido em torno do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL – atual DEM) detinha o poder político e exercia forte influência no judiciário e nos tribunais de contas do estado, enquanto a oposição era composta por alguns políticos do PT, PSB e PCdoB. O país vivia uma crise ética que envolvia os senadores Antônio Carlos Magalhães, cacique da política baiana, e José Roberto Arruda (PSDB), acusados de violar o painel do senado para manipular o resultado das votações no plenário, motivo pelo qual, no dia 16 de maio de 2001, milhares de estudantes universitários e secundaristas de Salvador, além de vários líderes de oposição à política carlista na Bahia (incluindo o então deputado federal Jaques Wagner, do PT), saíram às ruas protestando contra a corrupção e pedindo a cassação dos acusados. Ainda que a manifestação transcorresse pacificamente, o governador César Borges (PFL – atual DEM) deu ordem à tropa de choque da polícia militar para reprimir os manifestantes violentamente (com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha), chegando ao ponto de invadir a faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, violando uma área federal. Pontapé inicial para a derrocada da política carlista no estado, essa manifestação parecia anunciar uma mudança nos rumos políticos da Bahia, mas contraditoriamente o atual vice-governador, Otto Alencar, é o mesmo que, junto com César Borges, ordenou a ação truculenta contra os estudantes e, pior que isso, o coronel Alfredo Castro, que comandou a tropa de choque naquela ocasião, é hoje o comandante-geral da PM.
Ainda em 2001, no mês de julho, os policiais militares da Bahia, contando com o apoio de diversos políticos da oposição, deram início a uma greve que, mesmo não tendo gerado um aumento tão grande no número de homicídios, trouxe aos baianos o pânico dos arrastões e a sensação de insegurança nas ruas. Um dos principais nomes do movimento grevista era o soldado Marco Prisco, o mesmo que hoje lidera o grupo de policiais que ocupou a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, o qual revelara que, naquela época, o então deputado federal Jaques Wagner e outras lideranças do PT declararam pleno apoio à greve, chegando a fazer, segundo afirmou Prisco, uma doação de mais de R$ 3 mil ao movimento grevista, além da disponibilização de veículos. Por conta da sua atuação na greve de 2001 e pela tentativa de aquartelamento na sede do 8º BPM/São Joaquim, o soldado Marco Prisco foi exonerado em 9 de janeiro de 2002 e, desde então, tem feito uma intensa campanha junto a outros membros da categoria para a sua readmissão, tomando por base a Lei Federal nº 12.191/2010 (a Lei de Anistia), ignorada solenemente pelo governo do Estado da Bahia. De acordo com Prisco, que hoje é presidente da Associação dos Policiais e Bombeiros do Estado da Bahia (Aspra-BA), Jaques Wagner, que outrora apoiara os policiais grevistas, é um traidor, mas o atual governador do Estado da Bahia, desmentindo as acusações do principal líder da greve de 2012, nega veementemente que tenha financiado ou sequer dado apoio logístico ao movimento grevista de 2001.  
Não deixemos, porém, que a poeira levantada com esses fatos revirados no baú da história nos impeça de enxergar as coisas como realmente são e acabemos por eleger, como é de costume em situações como essa, o ex-soldado Marco Prisco como um mártir do movimento grevista. Antes de qualquer conclusão precipitada, é importante rememorar a trajetória de Prisco desde a exoneração da PM até sua ascensão ao cargo de presidente da Aspra-BA. Aproveitando a visibilidade que havia conquistado e prometendo lutar por melhorias para os policiais, ele foi candidato a deputado estadual pelo PTC (Partido Trabalhista Cristão), em 2010, mas não conseguiu se eleger. Manteve-se na política através do MPL (Movimento Polícia Legal) e acabou assumindo, naquele mesmo ano, a presidência da Aspra-BA, mesmo estando afastado do quadro da PM. Atualmente filiado ao PSDB, o ex-soldado Marco Prisco participou de movimentos grevistas também no Maranhão e em Roraima, onde chegou a ser acusado de falsidade ideológica por ter se apresentado publicamente como “deputado estadual baiano”. Com um histórico desse seria possível, minimamente, questionar se Prisco milita coletivamente ou em causa própria, já que talvez não seja por acaso que a anistia para os policiais que participaram da greve (desta e daquela de 2001) esteja entre as principais pautas reivindicatórias. Não seria absurdo, ainda, indagar se as motivações de Prisco seriam meramente partidárias, uma vez que, agora, ele e o governador Jaques Wagner estão em lados opostos no jogo político.
Para se compreender, portanto, o cenário em que se desenhou a atual greve da PM, é necessário revirar alguns fatos do passado em busca de revelações. As contradições políticas do atual governo apontam para o fato de que, mesmo com o enfraquecimento da política carlista no estado, os partidos que antes militavam na oposição ainda não podem dizer que já aprenderam a caminhar coerentemente como governo e, à medida que se contradizem em suas ações, fortalecem os que hoje se lhe opõem. Não se pode negar, porém, que muitos dos que contribuíram para a chegada ao poder dos partidos que antes eram oposição se viram traídos por não conseguirem usar a máquina administrativa em benefício próprio, criando, assim, um forte clima de tensão e animosidade entre os que outrora foram aliados.