Por Jurgen Souza
Ainda que não estejam, de forma alguma, imunes aos
constantes jogos de interesses político-partidários, certamente os
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (instaurada há um
ano) e das Comissões Estaduais da Verdade (a da Bahia será
instaurada nos próximos dias), darão contribuições significativas
para esclarecer os muitos fatos que vieram à tona com a recente
abertura dos arquivos do período da ditadura militar. Amparados pela
chamada “Lei do Acesso à Informação” (Lei nº 12.527, de
18/11/2011), os membros dessas comissões têm disponibilizado e
devem continuar disponibilizando, via internet, cópias digitalizadas
dos documentos reveladores de uma das épocas mais sangrentas da
história do nosso país. Não é à toa, portanto, que o bispo Átila
Brandão, um político influente na atual administração da capital
baiana e um líder evangélico bastante conhecido na mídia local,
tenha reagido com tamanha sanha às informações que apontam o seu
envolvimento com torturas e mortes de estudantes entre os anos de
1968 a 1973, época em que Átila era capitão da Polícia Militar da
Bahia e chefiava uma equipe de repressão sediada no quartel dos
Dendezeiros.
Em artigo intitulado “Premunições de Dona Yayá”,
publicado no jornal A Tarde em fevereiro de 2013, o deputado e
jornalista Emiliano José revela a participação ativa de Átila
Brandão no aparato de repressão da ditadura na Bahia. Partindo de
uma entrevista gravada com a Srª Maria Helena Rocha Afonso, mãe do
historiador Renato Afonso de Carvalho – ex-preso político do
período da ditadura militar –, e de uma investigação documental
acurada, o artigo relata que, em 1968, o capitão Átila Brandão
teria atuado como agente da repressão infiltrado entre os estudantes
de direito da UFBA, tendo sido reconhecido, ainda naquele ano, por
Renato e seus colegas como o comandante da PM-BA que liderava as
violentas ações repressivas contra quaisquer manifestações de
oposição ao regime militar. Em virtude dessas descobertas, Renato
teria integrado um movimento entre os estudantes para expulsar Átila
da Faculdade de Direito da UFBA, gerando, assim, uma nítida
desavença entre eles.
Em fevereiro de 1971, segundo o relato da entrevistada,
Renato Afonso de Carvalho teria sido preso e violentamente torturado
por militares no Rio de Janeiro. A pedido de Orlando de Carvalho, pai
de Renato, Dom Eugênio Salles (arcebispo do Rio de Janeiro naquela
ocasião) conseguiu que ele fosse transferido para Salvador sob
custódia da PM-BA, na esperança de evitar mais torturas. No
entanto, sua volta à Bahia nesse contexto extremamente desfavorável
acabou por colocá-lo frente a frente com seu antigo desafeto.
Conforme depoimento do próprio Renato Afonso de Carvalho ao Grupo
Tortura Nunca Mais da Bahia no dia 25/04/2013, o capitão Átila
Brandão, reconhecendo Renato dos episódios na universidade, não
quis conversa e imediatamente o levou ao porão do quartel de
Dendezeiros, agredindo-o com socos, chutes e xingamentos, à cata de
supostas informações sobre um grupo de militantes preso pelo
Exército no Paraná. Prestes a enfrentar o “pau-de-arara” e a
tomar choques elétricos, táticas de tortura comumente usadas
durante o período da ditadura militar, Renato foi salvo pela mãe,
que havia ido visitar o filho e, a essa altura, já havia passado
pelas sentinelas e estava no corredor em frente ao porão onde o
capitão o torturava.
Além desse fato relatado no artigo de Emiliano José,
há evidências documentais que comprovam que o capitão Átila
Brandão teria mesmo integrado as forças de repressão da ditadura
militar e comandado pessoalmente diversas ações de tortura contra
presos políticos nos chamados “anos de chumbo”. Átila é citado
reiteradas vezes como agente da repressão por, pelo menos, dois
documentos oficiais da época da ditadura (ambos confeccionados pelo
antigo Serviço Nacional de Informações – SNI): um documento da
agência baiana do SNI, datado de 13/10/1969, e uma ficha elaborada
pelo SNI a respeito do preso político Rosalindo Souza, morto e
desaparecido na Guerrilha do Araguaia em 1973, mencionam o nome do
capitão Átila Brandão como agente da repressão. Negando
veementemente essas acusações, o agora bispo de uma grande igreja
evangélica de Salvador e influente político do Partido Social
Cristão na Bahia, ao invés de buscar esclarecer publicamente os
fatos que vieram à tona, tem procurado usar seu poder político e
social para calar o jornalista que ousou sacudir a poeira dos
documentos antigos e revelar à sociedade baiana uma face até então
desconhecida de Átila Brandão.
Somente a nefasta mistura entre fundamentalismo
religioso, poder socioeconômico e influência política presente na
figura de Átila Brandão proporcionaria uma reação tão virulenta
ao referido artigo: um boletim de ocorrência, uma queixa-crime e
duas ações judiciais contra o jornalista, a quem chamou de “pau
mandado” e “papagaio de pirata”. Usando sua forte influência
na cúpula da sociedade baiana e seu consequente poderio político no
nível estadual, o bispo Átila Brandão conseguiu, em 13/05/2013,
uma liminar na justiça que ordenava a retirada imediata do artigo em
questão do site do referido jornalista. Até mesmo nas pregações
de Átila Brandão, transmitidas nas manhãs de sábado pela TV Aratu
(afiliada do SBT na Bahia), não faltam relatos de seu prestígio
social, de seu poder econômico e de sua influência política, os
quais, embora envoltos numa linguagem preponderantemente religiosa,
são utilizados como forma de intimidação aos possíveis “inimigos”
dos seus anseios nada modestos, já que ele se diz destinado por Deus
a presidir o Brasil. Apesar de sua fracassada candidatura ao
governo do Estado em 2006, Átila logrou êxito político nas últimas
eleições para a prefeitura da capital baiana, em 2012, quando
apoiou o agora prefeito ACM Neto e, não por acaso, conseguiu a
nomeação de seu filho, Átila Brandão de Oliveira Júnior, para o
cargo de assessor especial da subchefia de gabinete do prefeito.
Ainda que o texto de Emiliano José tenha sido
censurado por força de liminar judicial, o caso não deixou de
repercutir negativamente e acabou ganhando notoriedade nacional
quando a revista Carta Capital publicou, no dia 24/05/2013, o
artigo intitulado “O torturador ofendido”, redigido por Leandro
Fortes, o qual retoma o conteúdo do texto do jornalista baiano e
apresenta novos elementos a respeito da participação de Átila
Brandão como agente da repressão da ditadura militar. Segundo essa
outra reportagem, “enquanto aguarda a decisão final do
Tribunal de Justiça sobre as ações, o jornalista coleciona apoios
de entidades de defesa de direitos humanos e reúne novos documentos
sobre a participação do ex-capitão da PM na repressão durante a
ditadura”. O bispo Átila Brandão, por sua vez, deverá ser um dos
primeiros convocados pela Comissão Estadual da Verdade, da
qual se esperam o rigor e a isenção necessários a um país
verdadeiramente democrático, não permitindo que as relações de poder social, político e religioso soterrem novamente sob a poeira do esquecimento este momento do qual precisamos sempre nos lembrar para que, por meio da atitude ruminante de rememorar, estejamos sempre vigilantes acerca de um possível retorno ao passado. Como cristão autêntico que sou, creio que a um líder religioso que compreendeu a mensagem do Cristo cabia ao menos o reconhecimento da culpa e um pedido público de perdão às vítimas e às suas famílias, mas parece que sua postura autoritária não conseguiu, infelizmente, ser convertida na postura amorosa daquele a quem ele diz seguir.