domingo, 26 de maio de 2013

RELIGIÃO, PODER E POLÍTICA NA BAHIA

Por Jurgen Souza

         

Ainda que não estejam, de forma alguma, imunes aos constantes jogos de interesses político-partidários, certamente os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (instaurada há um ano) e das Comissões Estaduais da Verdade (a da Bahia será instaurada nos próximos dias), darão contribuições significativas para esclarecer os muitos fatos que vieram à tona com a recente abertura dos arquivos do período da ditadura militar. Amparados pela chamada “Lei do Acesso à Informação” (Lei nº 12.527, de 18/11/2011), os membros dessas comissões têm disponibilizado e devem continuar disponibilizando, via internet, cópias digitalizadas dos documentos reveladores de uma das épocas mais sangrentas da história do nosso país. Não é à toa, portanto, que o bispo Átila Brandão, um político influente na atual administração da capital baiana e um líder evangélico bastante conhecido na mídia local, tenha reagido com tamanha sanha às informações que apontam o seu envolvimento com torturas e mortes de estudantes entre os anos de 1968 a 1973, época em que Átila era capitão da Polícia Militar da Bahia e chefiava uma equipe de repressão sediada no quartel dos Dendezeiros.
             Em artigo intitulado “Premunições de Dona Yayá”, publicado no jornal A Tarde em fevereiro de 2013, o deputado e jornalista Emiliano José revela a participação ativa de Átila Brandão no aparato de repressão da ditadura na Bahia. Partindo de uma entrevista gravada com a Srª Maria Helena Rocha Afonso, mãe do historiador Renato Afonso de Carvalho – ex-preso político do período da ditadura militar –, e de uma investigação documental acurada, o artigo relata que, em 1968, o capitão Átila Brandão teria atuado como agente da repressão infiltrado entre os estudantes de direito da UFBA, tendo sido reconhecido, ainda naquele ano, por Renato e seus colegas como o comandante da PM-BA que liderava as violentas ações repressivas contra quaisquer manifestações de oposição ao regime militar. Em virtude dessas descobertas, Renato teria integrado um movimento entre os estudantes para expulsar Átila da Faculdade de Direito da UFBA, gerando, assim, uma nítida desavença entre eles.
            Em fevereiro de 1971, segundo o relato da entrevistada, Renato Afonso de Carvalho teria sido preso e violentamente torturado por militares no Rio de Janeiro. A pedido de Orlando de Carvalho, pai de Renato, Dom Eugênio Salles (arcebispo do Rio de Janeiro naquela ocasião) conseguiu que ele fosse transferido para Salvador sob custódia da PM-BA, na esperança de evitar mais torturas. No entanto, sua volta à Bahia nesse contexto extremamente desfavorável acabou por colocá-lo frente a frente com seu antigo desafeto. Conforme depoimento do próprio Renato Afonso de Carvalho ao Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia no dia 25/04/2013, o capitão Átila Brandão, reconhecendo Renato dos episódios na universidade, não quis conversa e imediatamente o levou ao porão do quartel de Dendezeiros, agredindo-o com socos, chutes e xingamentos, à cata de supostas informações sobre um grupo de militantes preso pelo Exército no Paraná. Prestes a enfrentar o “pau-de-arara” e a tomar choques elétricos, táticas de tortura comumente usadas durante o período da ditadura militar, Renato foi salvo pela mãe, que havia ido visitar o filho e, a essa altura, já havia passado pelas sentinelas e estava no corredor em frente ao porão onde o capitão o torturava.
       Além desse fato relatado no artigo de Emiliano José, há evidências documentais que comprovam que o capitão Átila Brandão teria mesmo integrado as forças de repressão da ditadura militar e comandado pessoalmente diversas ações de tortura contra presos políticos nos chamados “anos de chumbo”. Átila é citado reiteradas vezes como agente da repressão por, pelo menos, dois documentos oficiais da época da ditadura (ambos confeccionados pelo antigo Serviço Nacional de Informações – SNI): um documento da agência baiana do SNI, datado de 13/10/1969, e uma ficha elaborada pelo SNI a respeito do preso político Rosalindo Souza, morto e desaparecido na Guerrilha do Araguaia em 1973, mencionam o nome do capitão Átila Brandão como agente da repressão. Negando veementemente essas acusações, o agora bispo de uma grande igreja evangélica de Salvador e influente político do Partido Social Cristão na Bahia, ao invés de buscar esclarecer publicamente os fatos que vieram à tona, tem procurado usar seu poder político e social para calar o jornalista que ousou sacudir a poeira dos documentos antigos e revelar à sociedade baiana uma face até então desconhecida de Átila Brandão.
      Somente a nefasta mistura entre fundamentalismo religioso, poder socioeconômico e influência política presente na figura de Átila Brandão proporcionaria uma reação tão virulenta ao referido artigo: um boletim de ocorrência, uma queixa-crime e duas ações judiciais contra o jornalista, a quem chamou de “pau mandado” e “papagaio de pirata”. Usando sua forte influência na cúpula da sociedade baiana e seu consequente poderio político no nível estadual, o bispo Átila Brandão conseguiu, em 13/05/2013, uma liminar na justiça que ordenava a retirada imediata do artigo em questão do site do referido jornalista. Até mesmo nas pregações de Átila Brandão, transmitidas nas manhãs de sábado pela TV Aratu (afiliada do SBT na Bahia), não faltam relatos de seu prestígio social, de seu poder econômico e de sua influência política, os quais, embora envoltos numa linguagem preponderantemente religiosa, são utilizados como forma de intimidação aos possíveis “inimigos” dos seus anseios nada modestos, já que ele se diz destinado por Deus a presidir o Brasil. Apesar de sua fracassada candidatura ao governo do Estado em 2006, Átila logrou êxito político nas últimas eleições para a prefeitura da capital baiana, em 2012, quando apoiou o agora prefeito ACM Neto e, não por acaso, conseguiu a nomeação de seu filho, Átila Brandão de Oliveira Júnior, para o cargo de assessor especial da subchefia de gabinete do prefeito.
        Ainda que o texto de Emiliano José tenha sido censurado por força de liminar judicial, o caso não deixou de repercutir negativamente e acabou ganhando notoriedade nacional quando a revista Carta Capital publicou, no dia 24/05/2013, o artigo intitulado “O torturador ofendido”, redigido por Leandro Fortes, o qual retoma o conteúdo do texto do jornalista baiano e apresenta novos elementos a respeito da participação de Átila Brandão como agente da repressão da ditadura militar. Segundo essa outra reportagem, “enquanto aguarda a decisão final do Tribunal de Justiça sobre as ações, o jornalista coleciona apoios de entidades de defesa de direitos humanos e reúne novos documentos sobre a participação do ex-capitão da PM na repressão durante a ditadura”. O bispo Átila Brandão, por sua vez, deverá ser um dos primeiros convocados pela Comissão Estadual da Verdade, da qual se esperam o rigor e a isenção necessários a um país verdadeiramente democrático, não permitindo que as relações de poder social, político e religioso soterrem novamente sob a poeira do esquecimento este momento do qual precisamos sempre nos lembrar para que, por meio da atitude ruminante de rememorar, estejamos sempre vigilantes acerca de um possível retorno ao passado. Como cristão autêntico que sou, creio que a um líder religioso que compreendeu a mensagem do Cristo cabia ao menos o reconhecimento da culpa e um pedido público de perdão às vítimas e às suas famílias, mas parece que sua postura autoritária não conseguiu, infelizmente, ser convertida na postura amorosa daquele a quem ele diz seguir.