Mestrado
na Bahia relaciona apagamento dos clíticos à influência africana[1]
Por Marcelo
Módolo e Henrique Braga[2]
Eles “casaro” esse ano que “cabô”. Sem
contextualização, essa frase poderia soar ambígua. “Eles” podem ter casado um
com o outro (“Eles, Sérgio e Graziela, casaram [um com o outro]”). É plausível
ainda interpretar que a frase se refira à formação de diferentes casais (“Eles,
Maurício e Aníbal, casaram [cada um com sua respectiva alma gêmea]”). Com
imaginação, seria possível cogitar até que se trata de enunciado em que um
sujeito casa terceiros (não é absurdo dizer que “Eles[, os padres,] casaram [muitos
noivos apaixonados]. Um defensor do português tido como padrão protestaria,
alegando que a inserção do pronome “reflexivo” resolve a questão. “Eles se
casaram nesse ano que acabou” e pronto!
Jurgen
Alves de Souza, em inédita dissertação de mestrado, alçou voo mais alto: o que
levou ao apagamento desse pronome em certas variedades do português brasileiro
(PB)? Já no título do trabalho, o linguista toma partido: em “As estruturas
reflexivas no português afro-brasileiro” (grifo dos autores), sugere
que, ao menos em certas variedades da língua, pode ter havido o fenômeno da “crioulização”.
Para os leigos em
terminologia linguística, um alerta: o termo “crioulização” se refere a
fenômeno linguístico e social: imagine a situação de contato entre culturas
cujas línguas sejam ininteligíveis (tal como, por causa da sanha expansionista
europeia, ocorreu na América, na África, na Ásia e na Oceania); para a
comunicação entre falantes de diferentes idiomas ser possível, emerge um
pidgin, um novo código, ainda rudimentar; passados muitos anos, o código – já dotado
de maior complexidade – passa a ser a língua materna legada ao grupo social
formado a partir daquele contato entre culturas. Todo esse processo se resume
no signo “crioulização”.
Jurgen Souza se insere
na tradição dos que admitem a hipótese de certos fenômenos do PB serem
decorrentes de contextos de crioulização. Traduzindo: embora não argumente
sobre o PB ser típica língua crioula, postula que certos usos não referendados podem,
em certas variedades, ser resquícios de contato linguístico inicialmente
rudimentar, entre colonizador e escravo africano. Um cético perguntaria: mas
como comprovar esse contato tantos anos depois do período escravagista?
Souza se valeu de
entrevistas em comunidades compostas por descendentes de escravos (Sapé,
Helvécia, Rio de Contas e Cinzento). Essas comunidades têm a peculiaridade de,
até a gravação das entrevistas, manterem considerável grau de isolamento,
configurando “ilhas linguísticas” (a fala desses grupos está documentada pelo
Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia, www.vertentes.ufba.br, coordenado por
Dante Lucchesi, da UFBA).
O tratamento dado por
Souza a seus dados, ao estudar o uso dos reflexivos, nasce da visão por ele
assumida sobre línguas em contato: num contexto em que um grupo dominado
aprende a língua do dominador (“transmissão irregular”), são eliminados
elementos gramaticais mais abstratos, que dispunham de menor funcionalidade
comunicativa e carga semântica mais tênue.
É esse o princípio de
que Souza se vale para analisar construções como “Aí depois ele Ø mudô daí e foi pra Conquista” (em vez de “se mudou”:
o Ø sinaliza campo não preenchido
pelo falante) e “Se ele Ø enfezá, ele não
sai não” (em vez de “se enfezar”), casos nos quais a falta do pronome não
prejudica a comunicação. Para o analista, embora não seja categórico esse
apagamento do pronome nas comunidades estudadas, os fatores que favorecem o não
uso do reflexivo parecem fortalecer a hipótese que relaciona apagamento a
processo de transmissão irregular.
Detido sobre
condicionantes sociais que levassem a maior ou menor apagamento dos pronomes,
Souza considerou o sexo do falante, a possibilidade de ele ter vivido seis
meses ou mais fora da comunidade e grau de isolamento dela (entre as
analisadas). Partiu-se do princípio: se o apagamento do clítico é marca de um
ancestral crioulo dessas variedades afro-brasileiras, quanto menos exposto a
variedades que realizassem o clítico, maior a chance de o falante manter esse
traço da sua gramática ancestral.
Os resultados: na fala
de homens, a probabilidade de se realizar o clítico é 0,61, mas cai para 0,42
na de mulheres (escala de 0 a 1,0). Dado relevante se considerarmos que, na
estrutura das comunidades, a dedicação ao lar limita o convívio das mulheres
com pessoas de culturas diferentes.
Os dados voltam a
favorecer a hipótese de Souza na fala dos que viveram fora da comunidade (0,59
a chance de o pronome aparecer) ante a dos que permaneceram nela (0,44): outra
vez o isolamento parece sinônimo de ausência do pronome.
A cartada final para
defender que houve transmissão irregular do idioma: entre as comunidades
estudadas, as mais isoladas usam menos o pronome. Vejamos os extremos: Sapé se
distingue das demais pela proximidade com Salvador. Cinzento, descendente de
quilombo e localizada num terreno de difícil acesso, chegou a passar longo
período sem contato com outras comunidades. Na primeira a probabilidade de um
indivíduo usar o clítico é alta: 0,72. Na segunda, bastante baixa: 0,33.
De posse desses
resultados comparativos, Jurgen Alves de Souza ousa reconstituir parte da
história linguística desse português “afro e brasileiro”. Num primeiro momento,
a transmissão irregular levou ao desaparecimento dos elementos “dispensáveis”
ao conteúdo da mensagem naquela situação comunicativa emergencial. Hoje, os
falantes com acesso aos padrões culturais e linguísticos externos buscam por
certas “sofisticações gramaticais”, que seus antepassados, sujeitados à dominação
dos senhores, não puderam conquistar.
É a história da língua
se confundindo com a história de seu povo.
[1] Reprodução, na íntegra, do texto publicado na Revista Língua Portuguesa, edição de maio/2012, a respeito da pesquisa acerca dos pronomes reflexivos realizada por Jurgen Souza durante o mestrado.
[2] Marcelo Módolo é professor
doutor e pesquisador da área de Filologia e Língua Portuguesa da USP. Henrique
Braga é doutorando na área de Filologia e Língua Portuguesa da USP, professor e
autor de materiais didáticos do curso Anglo Vestibulares.
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