quinta-feira, 17 de maio de 2012

O pronome que se perdeu


Mestrado na Bahia relaciona apagamento dos clíticos à influência africana[1]

Por Marcelo Módolo e Henrique Braga[2]


         Eles “casaro” esse ano que “cabô”. Sem contextualização, essa frase poderia soar ambígua. “Eles” podem ter casado um com o outro (“Eles, Sérgio e Graziela, casaram [um com o outro]”). É plausível ainda interpretar que a frase se refira à formação de diferentes casais (“Eles, Maurício e Aníbal, casaram [cada um com sua respectiva alma gêmea]”). Com imaginação, seria possível cogitar até que se trata de enunciado em que um sujeito casa terceiros (não é absurdo dizer que “Eles[, os padres,] casaram [muitos noivos apaixonados]. Um defensor do português tido como padrão protestaria, alegando que a inserção do pronome “reflexivo” resolve a questão. “Eles se casaram nesse ano que acabou” e pronto!
         Jurgen Alves de Souza, em inédita dissertação de mestrado, alçou voo mais alto: o que levou ao apagamento desse pronome em certas variedades do português brasileiro (PB)? Já no título do trabalho, o linguista toma partido: em “As estruturas reflexivas no português afro-brasileiro” (grifo dos autores), sugere que, ao menos em certas variedades da língua, pode ter havido o fenômeno da “crioulização”.
Para os leigos em terminologia linguística, um alerta: o termo “crioulização” se refere a fenômeno linguístico e social: imagine a situação de contato entre culturas cujas línguas sejam ininteligíveis (tal como, por causa da sanha expansionista europeia, ocorreu na América, na África, na Ásia e na Oceania); para a comunicação entre falantes de diferentes idiomas ser possível, emerge um pidgin, um novo código, ainda rudimentar; passados muitos anos, o código – já dotado de maior complexidade – passa a ser a língua materna legada ao grupo social formado a partir daquele contato entre culturas. Todo esse processo se resume no signo “crioulização”.
Jurgen Souza se insere na tradição dos que admitem a hipótese de certos fenômenos do PB serem decorrentes de contextos de crioulização. Traduzindo: embora não argumente sobre o PB ser típica língua crioula, postula que certos usos não referendados podem, em certas variedades, ser resquícios de contato linguístico inicialmente rudimentar, entre colonizador e escravo africano. Um cético perguntaria: mas como comprovar esse contato tantos anos depois do período escravagista?
Souza se valeu de entrevistas em comunidades compostas por descendentes de escravos (Sapé, Helvécia, Rio de Contas e Cinzento). Essas comunidades têm a peculiaridade de, até a gravação das entrevistas, manterem considerável grau de isolamento, configurando “ilhas linguísticas” (a fala desses grupos está documentada pelo Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia, www.vertentes.ufba.br, coordenado por Dante Lucchesi, da UFBA).
O tratamento dado por Souza a seus dados, ao estudar o uso dos reflexivos, nasce da visão por ele assumida sobre línguas em contato: num contexto em que um grupo dominado aprende a língua do dominador (“transmissão irregular”), são eliminados elementos gramaticais mais abstratos, que dispunham de menor funcionalidade comunicativa e carga semântica mais tênue.
É esse o princípio de que Souza se vale para analisar construções como “Aí depois ele Ø mudô daí e foi pra Conquista” (em vez de “se mudou”: o Ø sinaliza campo não preenchido pelo falante) e “Se ele Ø enfezá, ele não sai não” (em vez de “se enfezar”), casos nos quais a falta do pronome não prejudica a comunicação. Para o analista, embora não seja categórico esse apagamento do pronome nas comunidades estudadas, os fatores que favorecem o não uso do reflexivo parecem fortalecer a hipótese que relaciona apagamento a processo de transmissão irregular.
Detido sobre condicionantes sociais que levassem a maior ou menor apagamento dos pronomes, Souza considerou o sexo do falante, a possibilidade de ele ter vivido seis meses ou mais fora da comunidade e grau de isolamento dela (entre as analisadas). Partiu-se do princípio: se o apagamento do clítico é marca de um ancestral crioulo dessas variedades afro-brasileiras, quanto menos exposto a variedades que realizassem o clítico, maior a chance de o falante manter esse traço da sua gramática ancestral.
Os resultados: na fala de homens, a probabilidade de se realizar o clítico é 0,61, mas cai para 0,42 na de mulheres (escala de 0 a 1,0). Dado relevante se considerarmos que, na estrutura das comunidades, a dedicação ao lar limita o convívio das mulheres com pessoas de culturas diferentes.
Os dados voltam a favorecer a hipótese de Souza na fala dos que viveram fora da comunidade (0,59 a chance de o pronome aparecer) ante a dos que permaneceram nela (0,44): outra vez o isolamento parece sinônimo de ausência do pronome.
A cartada final para defender que houve transmissão irregular do idioma: entre as comunidades estudadas, as mais isoladas usam menos o pronome. Vejamos os extremos: Sapé se distingue das demais pela proximidade com Salvador. Cinzento, descendente de quilombo e localizada num terreno de difícil acesso, chegou a passar longo período sem contato com outras comunidades. Na primeira a probabilidade de um indivíduo usar o clítico é alta: 0,72. Na segunda, bastante baixa: 0,33.
De posse desses resultados comparativos, Jurgen Alves de Souza ousa reconstituir parte da história linguística desse português “afro e brasileiro”. Num primeiro momento, a transmissão irregular levou ao desaparecimento dos elementos “dispensáveis” ao conteúdo da mensagem naquela situação comunicativa emergencial. Hoje, os falantes com acesso aos padrões culturais e linguísticos externos buscam por certas “sofisticações gramaticais”, que seus antepassados, sujeitados à dominação dos senhores, não puderam conquistar.
É a história da língua se confundindo com a história de seu povo.


[1] Reprodução, na íntegra, do texto publicado na Revista Língua Portuguesa, edição de maio/2012, a respeito da pesquisa acerca dos pronomes reflexivos realizada por Jurgen Souza durante o mestrado.

[2] Marcelo Módolo é professor doutor e pesquisador da área de Filologia e Língua Portuguesa da USP. Henrique Braga é doutorando na área de Filologia e Língua Portuguesa da USP, professor e autor de materiais didáticos do curso Anglo Vestibulares.

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