sábado, 25 de junho de 2011

Mulher e teologia: reflexões acerca do fazer teológico


Por Jurgen Souza & Nilza Farias

Ao longo da história da humanidade, foi construída uma imagem da mulher como um ser de segunda categoria e, portanto, inferior ao homem. Desde as sociedades agrícolas do período neolítico até a sociedade contemporânea, a imagem atribuída à mulher foi a de reprodutora da espécie, ainda que, na prática, ela sempre participasse das atividades produtivas. Dessa forma, a mulher foi sendo vista como um ser mais frágil e incapaz de assumir papéis de liderança, o que restringiu sua função ao mundo doméstico e a tornou submissa ao homem. Ao contrário do que se possa pensar, a evolução das sociedades não aboliu o pensamento patriarcal e, mesmo com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a questão de gênero ainda fica evidente com as péssimas condições a que ela está exposta no ambiente de trabalho e com uma remuneração inferior à do homem que desempenha a mesma função. Discutir a mulher na sociedade de hoje, portanto, é compreender a necessidade de desconstruir os estereótipos criados em torno dela desde os primórdios da humanidade.
No âmbito teológico, essa necessária desconstrução deve conduzir ao questionamento das posturas dogmáticas e excludentes em relação ao fazer teológico, as quais durante muito tempo negaram à mulher o papel de sujeito histórico e a relegaram a segundo plano. Fazer teologia sempre esteve associado ao universo masculino, mas essa atividade múltipla e variada também inclui as mulheres, no sentido de que pode ser expressa através da vivência, da transmissão oral e na partilha simples da vida, não se limitando apenas aos cursos de teologia para, muito além disso, alcançar também as diversas comunidades de fé. É imprescindível, portanto, a formação de uma consciência histórica da mulher, levantando a bandeira da luta libertária que se dá por meio da ativa participação feminina em diferentes frentes – inclusive a teológica – das quais a mulher estava ausente. Esse pensamento conduzirá, então, a mulher a se enxergar como sujeito da história, despertando a consciência de seu importante papel social e o desejo de desempenhá-lo cada vez mais e melhor.
A partir da última década do século XX, a teologia de cunho feminista passou a discutir a possibilidade de uma leitura bíblica que englobasse as lutas feministas por libertação e bem-estar. Se a bíblia foi usada diversas vezes para difundir valores e visões patriarcais, o desafio agora era criar um sentido bíblico feminista, preocupando-se em contextualizar a leitura bíblica na vida das mulheres, as quais estão inseridas em estruturas sociais de dominação. Imerso no contexto da mulher latino-americana, brasileira e nordestina, o fazer teológico feminino acaba por enxergar a vida como o lugar da experiência simultânea da opressão e da libertação, incluindo, de maneira mais incisiva, o outro e as suas mazelas na ação de teologar, pois a luta por um mundo mais igualitário e mais humano, onde a vida triunfe de fato sobre as forças da morte, precisa fazer parte do pensamento teológico. É necessário, porém, ultrapassar o discurso teológico acadêmico e chegar, através das muitas comunidades de fé, aos cristãos de modo geral, valorizando e apoiando os ministérios dirigidos por mulheres, os quais, embora nem sempre sejam oficialmente reconhecidos por algumas denominações religiosas, são muito bem aceitos pelos membros comunidade. Esse novo modo de fazer teologia certamente coloca em xeque as formulações teológicas marcadamente machistas, que legitimam o poder masculino de utilizar o sagrado nas decisões tomadas nas igrejas, mas, como não é segredo para ninguém, desafiar o poder hegemônico masculino não é uma tarefa das mais fáceis.
Uma leitura feminina da bíblia deve, antes de mais nada, apresentar uma mudança na forma como vemos e experienciamos Deus, abrindo espaço para que se fale e se valorize a presença das mulheres nas Escrituras e nas igrejas. No que tange ao pecado original, por exemplo, uma leitura crítica dos textos bíblicos a partir da ótica feminina conduziria ao entendimento de que, ao contrário do que ocorre na leitura tradicional, a mulher não foi a única responsável pela introdução do pecado no mundo, realçando que homem e mulher compartilham da mesma condição de pecadores. Nessa perspectiva, então, ambos são também igualmente responsáveis pela transformação que fará a humanidade caminhar em direção a si mesma, despertando-lhe os anseios mais profundos de amor e de justiça na construção de um mundo diferente, onde a dignidade de cada um possa manifestar-se de fato. Tal forma de ler as Escrituras, centrada fundamentalmente na relação igualitária, acaba nos conduzindo a uma história real, construída igualmente pela ação de homens e mulheres de diferentes tempos, etnias e nações, e que por vezes foi ocultada por uma sociedade patriarcal que não nos permitiu conhecer a importância da mulher.
Contudo, não se pode fazer, de fato, uma leitura bíblica do ponto de vista feminista sem conduzir leitores e leitoras a um debate público a respeito do texto bíblico, fazendo da igreja um espaço democrático para esse repensar das Escrituras. Os significados da leitura bíblica precisam ser constantemente questionados, reconsiderados e reformulados, possibilitando que sejam enxergados os valores de dominação existentes na leitura tradicional e, ao mesmo tempo, difundir valores de libertação que possam conduzir a mulher a uma leitura bíblica feminista e emancipatória. Esse novo olhar sobre a mulher no mundo e, em especial, no universo do fazer teológico reivindica necessariamente um maior respeito à dignidade feminina e à sua participação na construção de uma nova sociedade que parece se projetar para os tempos vindouros.