sábado, 17 de março de 2012

Pós-modernidade, religiosidade midiática e identidade religiosa dos batistas brasileiros





                                 

A sociedade contemporânea tem experimentado momentos de ruptura que modificaram sobremaneira as referências culturais de classe, de gênero, de sexualidade, de etnia e, como não poderia deixar de ser, de religião. De acordo com o antropólogo Stuart Hall, o indivíduo, nesses tempos de pós-modernidade, não possui mais uma identidade fixa, passando a experimentar, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, contínuos deslocamentos identitários, marcados pelas diversas transformações ocorridas ao longo do tempo no que tange ao sentimento de pertença a determinada cultura étnica, linguística, religiosa ou nacional. Inicialmente, o conceito de identidade estava relacionado única e exclusivamente ao indivíduo, sendo, por isso mesmo, imutável, desde o nascimento até a morte. Mais tarde, porém, a identidade passou a ser compreendida pela aglutinação das características do indivíduo e do mundo cultural que ele habita, tornando-os unificados e previsíveis. Por fim, a concepção de identidade tornou-se mais flexível, formada e transformada continuamente de acordo com os sistemas culturais que rodeiam o indivíduo, o qual assume diferentes identidades nos diferentes momentos da relação com os outros. Em meio a todas essas transformações, a vivência da religiosidade, ainda que os religiosos mais ingênuos insistam em negar, não passou incólume.

Esse processo de mudança pelo qual o próprio conceito de identidade passou é determinante para se compreender a formação da identidade religiosa de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos na sociedade contemporânea. A identidade religiosa, outrora bem definida e estável, tornou-se fragmentada, variável e, por vezes, contraditória, contando com a importante contribuição da mídia – especialmente a televisiva –, que permitiu o acesso mais rápido e mais fácil a diferentes vivências religiosas e propiciou inúmeras mudanças nas práticas religiosas do sujeito pós-moderno.  Iniciada nos Estados Unidos a partir da década de 70, a midiatização da religião acabou alcançando também diversos países da América Latina, entre eles o Brasil, com uma assustadora presença nos meios de comunicação em massa. Se a cultura midiática pode possibilitar ao indivíduo uma mudança identitária, não é à toa que muitas religiões venham cada vez mais se apropriando dela como ferramenta para disseminar uma determinada identidade religiosa, multiplicando-se a cada dia os pregadores brasileiros que se utilizam da mídia e já contam hoje com suas próprias emissoras de rádio e televisão, páginas na internet e ainda ocupam um tempo considerável na programação de outras emissoras. Assim, as pessoas passaram a ser constantemente bombardeadas por diversos pregadores da mídia televisiva, tendo contato diário, ao simples clique do botão, com um mar de posicionamentos teológicos que as atingem sob a forma de um tsunami invisível e implacável.

Com o intuito de analisar a presença dos diversos grupos religiosos nos meios de comunicação em massa durante as décadas de 70 e 80, surgiu nos Estados Unidos o conceito de igreja eletrônica. Por protagonizarem escândalos que iam desde a sonegação do imposto de renda ao envolvimento com prostitutas, os televangelistas norte-americanos perderam espaço na mídia televisiva brasileira no final década de 80, abrindo caminho para o surgimento de um grande número de pregadores brasileiros que viriam a ocupar, mais tarde, essa lacuna deixada por eles, principalmente após o crescimento vertiginoso do movimento neopentecostal, a partir da década de 90.  Se antes a midiatização da religião apenas remetia ao espaço religioso tradicional, foi acontecendo paulatinamente a transferência do púlpito para o ambiente midiático, instaurando, segundo a pesquisadora Rosa Pignatari, novas formas de religiosidade, as quais buscam suporte muito mais nas estratégias de marketing típicas da mídia do que na estrutura tradicional da práxis religiosa. De acordo com a pesquisadora Magali Cunha, em virtude do surgimento dessas vivências religiosas mais inovadoras que a mídia proporcionou, foi desenvolvido, no final da década de 90, o conceito de religiosidade midiática, o qual aponta para uma superexposição do sujeito pós-moderno, ainda que de forma involuntária, aos diversos discursos religiosos que aparecem, sedutores e apelativos, ao simples clique do botão.

      No Brasil, segundo o pesquisador Sérgio Barbosa, os pregadores pentecostais, representados principalmente pelos líderes dos muitos ministérios da Igreja Assembleia de Deus, foram os primeiros a se utilizar da religiosidade midiática, apregoando em mídia nacional o batismo no Espírito Santo, a busca da santificação e a ética restritiva de costumes. Mais tarde, porém, os diversos pregadores neopentecostais, prenunciados por R.R Soares e Edir Macedo, passaram a se utilizar da religiosidade midiática para divulgar os eventos de cura, de exorcismo e de prosperidade financeira, sem enfatizar, no entanto, a necessidade de restrições de cunho moral e cultural para se alcançar a bênção divina. Apesar de ser marcada pela presença majoritária do pentecostalismo e do neopentecostalismo, a religiosidade midiática pode influenciar, e tem influenciado, a vivência religiosa de outros grupos denominacionais brasileiros, ainda que tenham bases doutrinárias bastante diferentes das veiculadas pelos principais pregadores de mídia. Mesmo uma denominação evangélica com raízes históricas como a batista não tem deixado de sentir as influências da religiosidade midiática no entendimento do que é ser batista nos tempos de hoje.

Não se pode esquecer, porém, que a própria origem da denominação batista aponta, segundo Martin Hewitt, para a formação de uma prática religiosa constituída pela conjugação dos ideais dos separatistas europeus e dos anabatistas ingleses (dois grupos de pensamentos distintos), recebendo, assim, influências teológicas do calvinismo, do arminianismo e do anabatismo. Essa confluência de pensamentos chega ao Brasil na segunda metade do século XIX, provocando diversas cisões nas igrejas ao longo da história dos batistas brasileiros, a ponto de ser esse um elemento constitutivo da própria identidade batista, ainda que não sejam poucos os esforços dos batistas brasileiros em procurar uma unidade de pensamento, como se pode comprovar pela veiculação de documentos como Pacto das Igrejas Batistas, Princípios Batistas e Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira

Por conta dessa tentativa de se uniformizar a identidade batista, tem-se refutado constantemente a vivência religiosa que a grande maioria das pessoas tem buscado nesses tempos pós-modernos, a qual está mais voltada às sensações espiritualistas e às promessas de sucesso e felicidade na vida cotidiana. Todavia, a superexposição dos batistas brasileiros à religiosidade midiática parece estar possibilitando a abertura de uma brecha no meio batista para que as ideias pentecostais e neopentecostais ajudem a formar uma nova identidade batista. Não por acaso, essa possível crise identitária passou a ser tema recorrente entre os batistas nos últimos anos, dividindo as opiniões de pastores e líderes da denominação, ainda que poucos deles tenham se dado ao trabalho de refletir sobre os rumos da identidade religiosa em meio à cada vez mais intensa midiatização da religiosidade, que parece ser marca indelével da pós-modernidade.  

sexta-feira, 9 de março de 2012

O ensino de língua materna e a diversidade linguística

Por Jurgen Souza

Marcada por uma acentuada heterogeneidade social, cultural e econômica, a história do nosso país aponta para a diversidade linguística que caracteriza a língua portuguesa aqui falada. A verdade é que o português falado no Brasil apresenta um alto grau de diversidade em virtude da sua grande extensão territorial e, sobretudo, da gritante desigualdade social que, desde os primeiros séculos de colonização, não permitiu que a maioria da população brasileira tivesse acesso aos padrões normativos da língua por ela falada. Contudo, essa diversidade linguística que se formou ao longo da história sociolinguística do nosso país parece ainda não ter atingido o ensino de língua materna, uma vez que boa parte das escolas brasileiras insiste em ensinar única e exclusivamente a variedade padrão preconizada pela gramática normativa, não reconhecendo como legítimas e considerando como erradas, numa atitude de flagrante preconceito linguístico, quaisquer outras variedades linguísticas.  
Não se pode negar que a história sociolinguística do Brasil, desde os primeiros séculos de colonização, foi marcada por uma bipolaridade no uso da língua. No Brasil Colônia, enquanto a reduzida elite colonial, alojada nos centros urbanos, procurava se manter fiel aos padrões gramaticais   lusitanos, a maioria da população – composta por negros, índios e mestiços  –  que se espalhava pelo interior do país falava um português aprendido de modo precário, sem instrutores ou escolas. Todavia, essa bipolarização linguística não é estanque, podendo-se verificar, a partir do início do século XX, uma clara tendência de aproximação entre os dois polos, já que o vigoroso processo de industrialização, a consequente urbanização e a popularização do ensino público foram ocasionando, segundo o pesquisador Dante Lucchesi, uma tendência de mudança no português popular em direção ao padrão urbano culto e, por outro lado, uma tendência de afastamento do padrão normativo europeu no chamado português culto. Mesmo com esse processo de aproximação entre a variedade popular e a variedade culta, é possível, porém, identificar ainda hoje a existência de muitas variedades linguísticas entre um extremo e outro. 
Os moldes em que a nação brasileira foi formada gerou, portanto, uma diversidade linguística que se tornou uma marca do nosso país.  Os diferentes usos da língua falada em território nacional denunciam, de imediato, o intenso processo de variação que os muitos estudos sociolinguísticos comprovam.  No entanto, de acordo com a pesquisadora Tânia Alkimim, as variedades encontradas na língua coexistem dentro de um processo de valoração social, pois essa coexistência se dá no contexto das relações sociais estabelecidas pela estrutura sociopolítica de cada comunidade, a qual costuma considerar algumas variedades como superiores e outras como inferiores. É possível, então, perceber muito claramente que existem variedades de prestígio e variedades não prestigiadas, sendo que, em sociedades de tradição ocidental como a nossa, a variedade linguística que goza de maior prestígio é, em geral, a variedade padrão, cujo uso é requerido pela comunidade em situações mais formais e definido como o modo “correto” de falar, motivo pelo qual as pessoas que não dominam tal variedade acabam sendo alvo do preconceito linguístico. O pesquisador Marcos Bagno declara que esse preconceito é fruto de uma confusão criada ao longo da nossa história entre língua e gramática normativa, sendo reproduzido e alimentado diariamente pelos meios de comunicação em massa, pelos livros didáticos e pela própria escola.
No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, os Parâmetros Curriculares Nacionais já orientam que a diversidade linguística seja trabalhada em sala de aula, no intuito de conduzir os alunos a reconhecer a legitimidade de todas as variedades linguísticas, inclusive as que se afastam da tradição gramatical. É importante ressaltar que não se trata de uma campanha contra o ensino da gramática normativa, até porque são notórias as relações de poder que estão envolvidas no uso da língua. Saber a variedade padrão prescrita pela gramática normativa é, de fato, necessário, uma vez que ela será exigida em algumas situações do cotidiano, podendo ser um instrumento de ascensão ou de exclusão social. Não se deve esquecer, no entanto, que essa é apenas uma das variedades da língua, sendo imprescindível que o estudante tenha ciência da existência de outras variedades linguísticas para que possa se desfazer do preconceito que muitas vezes lhe incutiram a respeito do seu próprio modo de falar.
Portanto, levar a diversidade linguística brasileira para a sala de aula de língua materna é, antes de tudo, uma atitude reveladora de respeito ao próprio usuário da língua, desenvolvendo-lhe a competência linguística necessária para o reconhecimento de que cada variedade linguística tem o seu lugar e o seu papel no âmbito do processo comunicativo para o qual a língua se presta. A escola, que, ao longo da história, sempre serviu aos interesses dos grupos dominantes – escondendo muitos fatos e inventando outros tantos –, depara-se agora com a possibilidade de reparar um dos muitos dos enganos a respeito da língua falada no Brasil. Contudo, é preciso que essa inclusão da diversidade linguística nas aulas de Língua Portuguesa esteja acompanhada de um melhor preparo do professor, sendo essencial que ele tenha acesso a um sólido arcabouço teórico a respeito do assunto, para que esse tipo de trabalho não seja, como muitas vezes ocorre, interpretado como uma tentativa de abolir o ensino da gramática normativa ou como a instituição do temido “tudo pode”. Nessa busca pelo aperfeiçoamento cada vez mais necessário ao papel de educador que o professor exerce, urge que ele saia da inércia intelectual e procure amparo na extensa literatura que tem se produzido acerca desse assunto tão debatido no meio acadêmico.

domingo, 4 de março de 2012

Quando a religiosidade silencia o grito de socorro

Por Jurgen Souza

Se as quase 8 mil mulheres soteropolitanas que tiveram a coragem de denunciar seus agressores em 2011 parecem exemplificar uma mudança no comportamento das vítimas, o silêncio continua sendo a maior barreira para que as leis já existentes possam sair do papel, já que, segundo pesquisas da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, as denúncias efetuadas não correspondem a nem mesmo um terço das agressões sofridas pelas mulheres na capital baiana. Dentre os diversos fatores que contribuem para o silêncio das vítimas, este texto faz uma breve reflexão, a despeito da proximidade do Dia Internacional da Mulher, sobre a influência da religiosidade na atitude passiva das muitas mulheres agredidas em relação aos agressores.
A compreensão dos motivos pelos quais muitas mulheres permanecem caladas diante das agressões sofridas no dia-a-dia passa, antes de tudo, pela construção social do que é ser mulher na cultura patriarcal em que estamos inseridos. Com o auxílio do pensamento judaico-cristão que impera há muito tempo na sociedade ocidental, foi sendo construída uma imagem da mulher como um ser frágil, inferior ao homem – para o qual devia obediência –, restrita ao ambiente doméstico e com a função única de reprodutora da espécie. Mesmo com a independência financeira e com os diversos avanços na legislação no sentido de assegurar os direitos da mulher, essa visão machista, longe de ter sido abolida com a chegada da pós-modernidade, parece arraigada no ideário coletivo de tal maneira que se manifesta sob a forma de violência contra a mulher, a qual tem sofrido quase sempre calada a dor da agressão. Esse silêncio angustiante tem, no entanto, raízes religiosas, ainda que a maioria das igrejas cristãs tente fechar os olhos para sua participação nesse cenário triste que se desenhou na sociedade brasileira, baiana e soteropolitana.
O mais estarrecedor é que a maior parte das agressões contra mulheres, legitimada por esse pensamento banhado de religiosidade, que dá ao homem o direito de subjugar a mulher, é feita pelos próprios parceiros e dentro da própria casa. Numa relação de dominação e coisificação do outro, a violência doméstica contra a mulher conta também, em muitos casos, com a conivência de diversos líderes religiosos, os quais orientam, evocando os argumentos da moral religiosa, que as mulheres agredidas devam compreender e se submeter, em silêncio, à autoridade do homem como “cabeça da família”, não sendo por acaso que o perfil das mulheres que passaram mais tempo sendo agredidas pelos parceiros esteja relacionado a uma vivência religiosa que anula sua autonomia como partícipe da entidade familiar. Em defesa da institucionalidade religiosa do casamento, não são poucos os líderes de igrejas cristãs, mormente as do segmento evangélico, que intimidam as vítimas que procuram o gabinete pastoral para um doloroso desabafo, ainda que seja por não saberem como lidar com o problema ou por terem um respeito demasiado à autoridade religiosa. Certamente, o posicionamento de uma boa parte dos líderes religiosos durante o aconselhamento dessas mulheres têm silenciado o grito de socorro que, em situações mais sérias, poderia salvar-lhes a vida.
Cabe ressaltar, porém, sobretudo para os leitores menos atentos, que a linha argumentativa aqui desenvolvida não é uma campanha contra a vivência da religiosidade, mas uma constatação de que, quando tal vivência não é sadia a ponto de preservar a vida e a integridade dos que a assumem, ela pode contribuir para que atrocidades sejam feitas com a conivência e, por que não dizer, com o auxílio indireto das lideranças religiosas. É claro que, em meio às diversas instituições e lideranças religiosas passivas diante da violência doméstica contra a mulher, há também aquelas que, compreendendo a importante função social que exercem na vida cotidiana, têm se posicionado veementemente contrárias a qualquer ato de subjugação e desvalorização da mulher, por entenderem que a continuidade da reprodução desse sistema ideológico que a religião ajudou a criar está na base de muitas agressões sofridas por mulheres Brasil afora. Assim, uma orientação religiosa que induza mulheres agredidas a, silenciosamente, conviverem com seus agressores parece ser incongruente com a tão desejada religiosidade sadia, a qual merece o respeito até de quem não é religioso. Urge, portanto, que igrejas cristãs repensem se os valores que têm transmitido e defendido encontram, de fato, algum respaldo nos ensinamentos deixados pelo Cristo ou estão fundados apenas na intolerância e no desrespeito do sexismo que tem marcado negativamente a história da humanidade.