A sociedade
contemporânea tem experimentado momentos de ruptura que modificaram
sobremaneira as referências culturais de classe, de gênero, de sexualidade, de
etnia e, como não poderia deixar de ser, de religião. De acordo com o antropólogo
Stuart Hall, o indivíduo, nesses tempos de pós-modernidade,
não possui mais uma identidade fixa, passando a experimentar, à medida que os
sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, contínuos
deslocamentos identitários, marcados pelas diversas transformações ocorridas ao
longo do tempo no que tange ao sentimento de pertença a determinada cultura
étnica, linguística, religiosa ou nacional. Inicialmente, o conceito de identidade
estava relacionado única e exclusivamente ao indivíduo, sendo, por isso mesmo,
imutável, desde o nascimento até a morte. Mais tarde, porém, a identidade passou
a ser compreendida pela aglutinação das características do indivíduo e do mundo
cultural que ele habita, tornando-os unificados e previsíveis. Por fim, a
concepção de identidade tornou-se mais flexível, formada e transformada
continuamente de acordo com os sistemas culturais que rodeiam o indivíduo, o
qual assume diferentes identidades nos diferentes momentos da relação com os
outros. Em meio a todas essas transformações, a vivência da religiosidade, ainda
que os religiosos mais ingênuos insistam em negar, não passou incólume.
Esse processo de mudança pelo qual o
próprio conceito de identidade passou é determinante para se compreender a formação
da identidade religiosa de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos na
sociedade contemporânea. A identidade religiosa, outrora bem definida e
estável, tornou-se fragmentada, variável e, por vezes, contraditória, contando
com a importante contribuição da mídia
– especialmente a televisiva –, que permitiu o acesso mais rápido e mais fácil
a diferentes vivências religiosas e propiciou inúmeras mudanças nas práticas
religiosas do sujeito pós-moderno. Iniciada
nos Estados Unidos a partir da década de 70, a midiatização da religião acabou
alcançando também diversos países da América Latina, entre eles o Brasil, com
uma assustadora presença nos meios de comunicação em massa. Se
a cultura midiática pode possibilitar ao indivíduo uma mudança identitária, não
é à toa que muitas religiões venham cada vez mais se apropriando dela como
ferramenta para disseminar uma determinada identidade religiosa,
multiplicando-se a cada dia os pregadores brasileiros que se utilizam da mídia e
já contam hoje com suas próprias emissoras de rádio e televisão, páginas na
internet e ainda ocupam um tempo considerável na programação de outras
emissoras. Assim, as pessoas passaram a ser constantemente
bombardeadas por diversos pregadores da mídia televisiva, tendo contato diário,
ao simples clique do botão, com um mar de posicionamentos teológicos que as
atingem sob a forma de um tsunami invisível e implacável.
Com o intuito
de analisar a presença dos diversos grupos religiosos nos meios de comunicação em
massa durante as décadas de 70 e 80, surgiu nos Estados Unidos o conceito de igreja eletrônica. Por protagonizarem
escândalos que iam desde a sonegação do imposto de renda ao envolvimento com
prostitutas, os televangelistas norte-americanos perderam espaço na mídia
televisiva brasileira no final década de 80, abrindo caminho para o surgimento
de um grande número de pregadores brasileiros que viriam a ocupar, mais tarde, essa
lacuna deixada por eles, principalmente após o crescimento vertiginoso do movimento
neopentecostal, a partir da década de 90. Se antes a midiatização da religião apenas remetia
ao espaço religioso tradicional, foi acontecendo paulatinamente a transferência
do púlpito para o ambiente midiático, instaurando, segundo a pesquisadora Rosa Pignatari,
novas formas de religiosidade, as quais buscam suporte muito mais nas estratégias
de marketing típicas da mídia do que na estrutura tradicional da práxis
religiosa. De acordo com a pesquisadora Magali Cunha, em virtude do surgimento
dessas vivências religiosas mais inovadoras que a mídia proporcionou, foi
desenvolvido, no final da década de 90, o conceito de religiosidade midiática, o qual aponta para uma superexposição do
sujeito pós-moderno, ainda que de forma involuntária, aos diversos discursos
religiosos que aparecem, sedutores e apelativos, ao simples clique do botão.
No
Brasil, segundo o pesquisador Sérgio Barbosa, os pregadores pentecostais,
representados principalmente pelos líderes dos muitos ministérios da Igreja
Assembleia de Deus, foram os primeiros a se utilizar da religiosidade midiática,
apregoando em mídia nacional o batismo no Espírito Santo, a busca da
santificação e a ética restritiva de costumes. Mais tarde, porém, os diversos
pregadores neopentecostais, prenunciados por R.R Soares e Edir Macedo, passaram
a se utilizar da religiosidade midiática para divulgar os eventos de cura, de
exorcismo e de prosperidade financeira, sem enfatizar, no entanto, a necessidade
de restrições de cunho moral e cultural para se alcançar a bênção divina. Apesar
de ser marcada pela presença majoritária do pentecostalismo e do
neopentecostalismo, a religiosidade midiática pode influenciar, e tem influenciado, a vivência
religiosa de outros grupos denominacionais brasileiros, ainda que tenham bases
doutrinárias bastante diferentes das veiculadas pelos principais pregadores de
mídia. Mesmo uma denominação evangélica com raízes históricas como a batista
não tem deixado de sentir as influências da religiosidade midiática no
entendimento do que é ser batista nos tempos de hoje.
Não se pode
esquecer, porém, que a própria origem da denominação batista aponta, segundo Martin
Hewitt, para a formação de uma prática religiosa constituída pela conjugação dos
ideais dos separatistas europeus e dos anabatistas ingleses (dois grupos de
pensamentos distintos), recebendo, assim, influências teológicas do calvinismo,
do arminianismo e do anabatismo. Essa confluência de pensamentos chega ao
Brasil na segunda metade do século XIX, provocando diversas cisões nas igrejas ao
longo da história dos batistas brasileiros, a ponto de ser esse um elemento
constitutivo da própria identidade batista, ainda que não sejam poucos os
esforços dos batistas brasileiros em procurar uma unidade de pensamento, como
se pode comprovar pela veiculação de documentos como Pacto das Igrejas Batistas, Princípios
Batistas e Declaração Doutrinária da
Convenção Batista Brasileira.
Por conta dessa tentativa de se uniformizar a
identidade batista, tem-se refutado constantemente a vivência religiosa que a
grande maioria das pessoas tem buscado nesses tempos pós-modernos, a qual está
mais voltada às sensações espiritualistas e às promessas de sucesso e
felicidade na vida cotidiana. Todavia, a superexposição dos batistas
brasileiros à religiosidade midiática parece estar possibilitando a abertura de
uma brecha no meio batista para que as ideias pentecostais e neopentecostais ajudem
a formar uma nova identidade batista. Não por acaso, essa possível crise identitária passou a ser tema recorrente entre os batistas nos últimos anos, dividindo as opiniões de pastores e líderes da denominação, ainda que poucos deles tenham se dado ao trabalho de refletir sobre os rumos da identidade religiosa em meio à cada vez mais intensa midiatização da religiosidade, que parece ser marca indelével da pós-modernidade.
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