domingo, 26 de junho de 2011

O papel da religião na luta pela cidadania

Por Jurgen Souza

Quando o termo “cidadania” surgiu ainda na Grécia Antiga, sua concepção não abrangia todos os moradores da polis, uma vez que, nessa época, somente era considerado cidadão o homem-livre e nascido na terra, o qual gozava da isonomia (direito de igualdade perante as leis) e da isegoria (direito de opinar sobre as questões administrativas da polis), mas tal condição era restrita apenas aos que tinham mais posses. Todavia, ainda que se restringisse a uma pequena parcela da população grega, o direito à cidadania era algo inovador para aquele momento, visto que, em antigos impérios – como o persa, o egípcio, o babilônico, o hindu e o chinês –, vigorava o poder absolutista do déspota, que, legitimado pelo discurso religioso, oprimia a população. Somente no final do império greco-romano, a partir das reivindicações dos camponeses pobres, a cidadania se estendeu a qualquer homem-livre que nascesse naquela terra, independente de sua situação econômica.
Apesar de não fazer uso do termo “cidadania”, a literatura profética bíblica tem vestígios indeléveis da existência, antes mesmo das supostas origens gregas, de uma discussão acerca de tal assunto, evidenciada quando se estudam os discursos proféticos a respeito do reinado israelita de Jeroboão II (787 – 747 a.C.), destacando-se as contribuições dos profetas Amós e Oséias. Último rei da Dinastia de Jeú, Jeroboão II inverteu um sucessivo quadro de crises político-econômicas no Reino de Israel, pois os reis que o precederam haviam sido obrigados a pagar tributos e até a entregar parte de seu território a outros reinos. Ele, então, retomou as terras perdidas e deteve o controle das principais rotas comerciais da época, além de ter sido favorecido pelas boas relações com o Reino de Judá e pela aparente estagnação do Império Assírio. Esse período de grande riqueza foi marcado, porém, por um terrível processo de desigualdade social, pois o sistema administrativo concentrava a renda nas mãos de poucos e empobrecia a maioria da população. Contribuindo para o aumento dessa desigualdade, a religião servia de centro arrecadador do reinado, oprimindo ainda mais o povo.
Contrários a essa opressão política, social e econômica a que o povo fora submetido, insurgiram-se Amós e Oséias, representantes do profetismo naquela época, os quais instauraram um debate que, bem entendido, via as questões religiosas como práticas sociais de poder e subjugação. Amós, retratando o primeiro momento do reinado de Jeroboão II, fez uma crítica ferrenha ao fato de o espaço religioso estar sendo utilizado como cenário de manipulação e subjugação do povo, que, já tão explorado pelas políticas adotadas no reino, era incitado pelo sacerdote a contribuir ainda mais, pois o templo, nessa época, estava a serviço do Estado, e o sacerdote era funcionário do rei. Além disso, o profeta fez críticas duríssimas diretas à estrutura governamental, denunciando o incentivo aos grandes latifúndios, a imposição de pesados tributos aos pequenos agricultores, o regime de trabalho forçado da corvéia e o suborno ao direito dos pobres por parte dos mais ricos.
Oséias, por sua vez, retratou os momentos finais do reinado de Jeroboão II, denunciando principalmente a inserção de elementos do culto a Baal na religião israelita, que legitimavam a opressão e a exploração do povo. Alguns historiadores afirmam que os rituais de fecundidade e fertilidade da terra, que passaram a fazer parte da religião popular, eram uma forma de aumentar a taxa de natalidade entre os mais pobres e, consequentemente, a mão-de-obra na corvéia, gerando mais riqueza para os latifundiários. Outros estudiosos, no entanto, viam tal questão religiosa sob a ótica política, pois a aceitação dessa idolatria poderia levar Israel a procurar a salvação não em Deus, mas nas alianças com o Egito e a Assíria – grandes potências militares do momento. Não era propriamente à religião, portanto, que se dirigia a dura crítica do profeta, mas à forma dissimulada de opressão e cerceamento de direitos dos cidadãos israelitas a que a religião se servia, e ao próprio sistema monárquico, que é visto como fruto da ira de Deus.
Não menos desigual e opressora, a sociedade contemporânea ainda encontra respaldo na religião para cercear o direito à cidadania para muitas pessoas. Uma religião que fecha os olhos para a condição de opressão social a que os menos abastados estão submetidos aponta para uma forma de relação entre o sagrado e o humano que responde apenas aos anseios dos estratos sociais mais elevados. Não se pode negar também que a escolha da forma de vivenciar a religiosidade leva em consideração outros interesses, podendo a religião, como aconteceu em muitos momentos da história, estar a serviço do poder político vigente, sendo usada como instrumento de manutenção da ordem social. É facilmente perceptível, desde que não fechemos os olhos à realidade, que, apesar de vivermos num país em que a Constituição Federal estabelece a cidadania como princípio fundamental, reconhecendo que todos os brasileiros têm direito a ela, aqueles que ocupam uma posição subalterna nas estruturas sociais parecem não ter assegurados os seus direitos de cidadãos, pois não lhe são dadas as condições necessárias para que isso ocorra.
É possível ser verdadeiramente um cidadão com um sistema de justiça moroso para os marginalizados e eficaz para os detentores do poder? Podemos exercer, de fato, o direito à cidadania sem ter acesso à educação e à saúde pública de qualidade? Alguém pode se considerar cidadão quando sequer tem o que comer? Perguntas como essas nos emudecem porque as respostas que temos a dar são vergonhosas. Percorremos, ao longo desse texto, um caminho reflexivo que partiu das origens históricas, relembrando e aprendendo com as histórias bíblicas, para chegarmos às implicações que o debate acerca da cidadania pode abarcar. Essa trajetória, longe de ser apenas um mero retorno ao passado, anseia por nos conduzir de volta ao debate contemporâneo acerca da cidadania, sem que, no entanto, possamos nos esquecer das tênues relações que existiram e existem entre as práticas religiosas e os processos legitimadores de poder. Espera-se, assim, que a leitura deste texto venha, ao menos, possibilitar algumas reflexões necessárias das quais não poderemos mais fugir, pois o direito à cidadania e as políticas que a implementam passam, antes mesmo de passar pelo Congresso Nacional, pela sociedade civil organizada e atuante, da qual as instituições religiosas precisam fazer parte. Não podemos deixar de ouvir os gritos proféticos que ainda hoje ecoam, ávidos por resposta.