domingo, 4 de março de 2012

Quando a religiosidade silencia o grito de socorro

Por Jurgen Souza

Se as quase 8 mil mulheres soteropolitanas que tiveram a coragem de denunciar seus agressores em 2011 parecem exemplificar uma mudança no comportamento das vítimas, o silêncio continua sendo a maior barreira para que as leis já existentes possam sair do papel, já que, segundo pesquisas da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, as denúncias efetuadas não correspondem a nem mesmo um terço das agressões sofridas pelas mulheres na capital baiana. Dentre os diversos fatores que contribuem para o silêncio das vítimas, este texto faz uma breve reflexão, a despeito da proximidade do Dia Internacional da Mulher, sobre a influência da religiosidade na atitude passiva das muitas mulheres agredidas em relação aos agressores.
A compreensão dos motivos pelos quais muitas mulheres permanecem caladas diante das agressões sofridas no dia-a-dia passa, antes de tudo, pela construção social do que é ser mulher na cultura patriarcal em que estamos inseridos. Com o auxílio do pensamento judaico-cristão que impera há muito tempo na sociedade ocidental, foi sendo construída uma imagem da mulher como um ser frágil, inferior ao homem – para o qual devia obediência –, restrita ao ambiente doméstico e com a função única de reprodutora da espécie. Mesmo com a independência financeira e com os diversos avanços na legislação no sentido de assegurar os direitos da mulher, essa visão machista, longe de ter sido abolida com a chegada da pós-modernidade, parece arraigada no ideário coletivo de tal maneira que se manifesta sob a forma de violência contra a mulher, a qual tem sofrido quase sempre calada a dor da agressão. Esse silêncio angustiante tem, no entanto, raízes religiosas, ainda que a maioria das igrejas cristãs tente fechar os olhos para sua participação nesse cenário triste que se desenhou na sociedade brasileira, baiana e soteropolitana.
O mais estarrecedor é que a maior parte das agressões contra mulheres, legitimada por esse pensamento banhado de religiosidade, que dá ao homem o direito de subjugar a mulher, é feita pelos próprios parceiros e dentro da própria casa. Numa relação de dominação e coisificação do outro, a violência doméstica contra a mulher conta também, em muitos casos, com a conivência de diversos líderes religiosos, os quais orientam, evocando os argumentos da moral religiosa, que as mulheres agredidas devam compreender e se submeter, em silêncio, à autoridade do homem como “cabeça da família”, não sendo por acaso que o perfil das mulheres que passaram mais tempo sendo agredidas pelos parceiros esteja relacionado a uma vivência religiosa que anula sua autonomia como partícipe da entidade familiar. Em defesa da institucionalidade religiosa do casamento, não são poucos os líderes de igrejas cristãs, mormente as do segmento evangélico, que intimidam as vítimas que procuram o gabinete pastoral para um doloroso desabafo, ainda que seja por não saberem como lidar com o problema ou por terem um respeito demasiado à autoridade religiosa. Certamente, o posicionamento de uma boa parte dos líderes religiosos durante o aconselhamento dessas mulheres têm silenciado o grito de socorro que, em situações mais sérias, poderia salvar-lhes a vida.
Cabe ressaltar, porém, sobretudo para os leitores menos atentos, que a linha argumentativa aqui desenvolvida não é uma campanha contra a vivência da religiosidade, mas uma constatação de que, quando tal vivência não é sadia a ponto de preservar a vida e a integridade dos que a assumem, ela pode contribuir para que atrocidades sejam feitas com a conivência e, por que não dizer, com o auxílio indireto das lideranças religiosas. É claro que, em meio às diversas instituições e lideranças religiosas passivas diante da violência doméstica contra a mulher, há também aquelas que, compreendendo a importante função social que exercem na vida cotidiana, têm se posicionado veementemente contrárias a qualquer ato de subjugação e desvalorização da mulher, por entenderem que a continuidade da reprodução desse sistema ideológico que a religião ajudou a criar está na base de muitas agressões sofridas por mulheres Brasil afora. Assim, uma orientação religiosa que induza mulheres agredidas a, silenciosamente, conviverem com seus agressores parece ser incongruente com a tão desejada religiosidade sadia, a qual merece o respeito até de quem não é religioso. Urge, portanto, que igrejas cristãs repensem se os valores que têm transmitido e defendido encontram, de fato, algum respaldo nos ensinamentos deixados pelo Cristo ou estão fundados apenas na intolerância e no desrespeito do sexismo que tem marcado negativamente a história da humanidade.

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