sexta-feira, 22 de junho de 2012

Amordaçadas em nome de Deus


Por Jurgen Souza

Com o amparo da compreensão literal de diversos trechos da bíblia, construiu-se em nossa sociedade uma imagem da mulher como um ser de segunda categoria e, portanto, inferior ao homem, a quem ela deve ser silenciosamente submissa. Esse pensamento preconceituoso, que remonta aos primórdios da humanidade, tem sido usado ainda hoje para legitimar a visão de que a mulher, considerada mais frágil, seria incapaz de assumir papéis de liderança, inclusive nas igrejas. Essa vergonhosa postura dogmática e excludente das religiões cristãs fez com que a liderança eclesiástica sempre estivesse associada ao universo masculino, minimizando o importante papel da mulher nessa esfera da sociedade. Instigado por essa triste realidade, o presente texto pretende apresentar uma leitura inclusiva de I Timóteo 2:9-15, o qual orienta que as mulheres devem ficar em silêncio na igreja e, por isso mesmo, tem sido utilizado entre os cristãos para negar a biblicidade da liderança feminina.
Antes de mais nada, porém, vale lembrar que as cartas pastorais (I e II Timóteo e Tito) apresentam, de acordo com os teólogos contemporâneos, problemas com relação à autenticidade e à autoria que precisam ser levados em consideração. Mesmo reconhecendo nelas alguns traços identitários da tradição paulina e não desmerecendo sua importância para o cristianismo, teólogos como Norbert Brox e Günther Bornkamm acreditam ser mais provável que elas tenham sido escritas por redatores posteriores a Paulo, apesar de seguirem o modelo epistolar paulino e serem assinadas com o nome do apóstolo, já que seu estilo, seu vocabulário e seu conteúdo diferem das cartas paulinas consideradas autênticas (Romanos, Gálatas, I e II Coríntios, I Tessalonicenses, Filipenses e Filemon). No caso de I Timóteo, é muito provável que tenha sido enviada por algum discípulo de Paulo ao jovem pastor da comunidade de Éfeso no final do primeiro século, dando-lhe algumas orientações acerca de assuntos práticos da vivência religiosa dos cristãos daquele lugar e enfatizando a necessidade de se manter viva a tradição do evangelho de Jesus Cristo.
Uma das orientações mais polêmicas da primeira epístola a Timóteo, e que parece divergir do conteúdo das cartas genuinamente paulinas, diz respeito à postura que deveria ser assumida pela mulher na adoração pública, a qual inclui a recomendação de que a mulher deveria ficar em silêncio na igreja. Teólogos como Wayne Meeks, Marga Ströher e Cristina Conti defendem que, em I Timóteo 2:9-15, o trecho contido entre o versículo 11 e o 15a apresenta um conteúdo que destoa do todo da carta, demonstrando a possível existência de uma interpolação posterior à escrita original do texto, a qual modificaria substancialmente a essência da mensagem original. Essa suspeita parece ter fundamento, já que, retirando-se o trecho supostamente interpolado, percebemos que a fluidez textual é mantida e não há comprometimento da estrutura argumentativa, assim como, se analisarmos o trecho retirado separadamente, percebemos que ele possui fluidez textual e estrutura argumentativa próprias. Por conta disso, então, I Timóteo 2:9, 10, 15b e I Timóteo 2:11-15a não podem ser considerados como um único texto, evidenciando que a parte interpolada foi adicionada depois com algum propósito diferente da parte originalmente escrita.
Os historiadores bíblicos José Alonso Díaz e Henri Delafosse afirmam que tal interpolação, bem como a interpolação contida em I Coríntios 14:34-35, teria sido feita no final do século II, com o intuito de combater as ideias e as práticas religiosas montanistas. O montanismo era um movimento cristão considerado herético que surgiu na segunda metade do século II, na região da Frígia, na Ásia Menor, sendo caracterizado por uma volta ao profetismo e por uma mensagem escatológica. O que mais preocupava os cristãos tradicionais, no entanto, era o fato de os montanistas considerarem a mulher como detentora de um grande privilégio diante de Deus, por ter sido a primeira a comer do fruto da árvore do conhecimento, fato que a colocava em posição de destaque nesse grupo e permitia que ela pudesse exercer cargos eclesiásticos relevantes. Não é à toa, portanto, que o trecho interpolado oriente a mulher a “aprender em silêncio, com toda submissão” (v. 11), advertindo ainda que “não ensine, nem exerça autoridade sobre o homem” (v. 12) e reiterando enfaticamente que “esteja em silêncio” (v. 12), utilizando como principal argumento o errôneo pensamento de que o pecado teria sido introduzido na humanidade por meio da mulher, conforme se observa pelo trecho “Adão não foi enganado, mas a mulher é que foi enganada e caiu em transgressão” (v.14). Não devemos nos esquecer, porém, de que a leitura de Gênesis 3:1-24 demonstra claramente que homem e mulher foram igualmente responsáveis pelo surgimento do pecado, a ponto de suas consequências atingirem a ambos.
Não é o fato de o texto de I Timóteo 2:9-15 não ter sido escrito exatamente por Paulo ou ter sido alterado em relação à escrita original que fará, de maneira alguma, com que ele deixe de ser relevante, enquanto Palavra de Deus, para os cristãos contemporâneos. Contudo, é imprescindível que nos concentremos nas lições de vida transmitidas pelo trecho original do texto, sem deixar de explicar, é claro, que as afirmações do trecho interpolado precisam ser entendidas a partir do contexto em que foi escrito. A respeito do trecho original, expressão adverbial “Do mesmo modo” (v. 9), que aparece logo no início do texto, aponta para um contraste entre o que vai ser dito acerca da postura da mulher e o que havia sido dito antes acerca da postura do homem na adoração pública. O requisito exigido do homem para a adoração pública era uma vida reta diante de Deus, conforme se observa pelo trecho “mãos santas, sem ódio nem discórdia” (v.8), sendo exigida igual retidão também por parte da mulher, a qual não agradaria a Deus pela aparência física, evidenciada pelos termos “tranças”, “ouro”, “pérolas” e “vestidos caríssimos” (v. 9), mas pela prática da benevolência que era conveniente às mulheres cristãs, como se pode perceber pelo trecho “se vistam de boas obras” (v.10). No final, a orientação dada à mulher é que “permaneça com domínio próprio na fé, no amor e na santificação” (v. 15b), evidenciando a necessidade de uma vida de retidão que já havia sido exigida também do homem.
Para que, nos dias de hoje, possamos fazer uma leitura de I Timóteo 2:9-15 coerente e fiel aos ensinamentos de Jesus, não devemos nos esquecer de que a restrição à participação da mulher nas atividades eclesiásticas não é uma orientação comum às comunidades paulinas, mas é fruto de um contexto específico e, por isso mesmo, não deve ser entendida como um princípio bíblico acerca da figura feminina dentro da igreja. Paulo, ao contrário, chega a recomendar a irmã Febe ao ministério da igreja em Roma, além de fazer menção a outras mulheres relevantes naquela igreja (Prisca ou Priscila, Maria, Júnia, Trifena, Trifosa, Pérside, a mãe de Rufo, Júlia e a irmã de Nereu), conforme lemos em Romanos 16:1-16. No texto de I Timóteo 2:9-15, a mensagem principal, comum a homens e mulheres, é que devemos ter uma vida reta e digna aos olhos humanos para que possamos adorar a Deus publicamente, já que são as nossas atitudes, e não a nossa aparência, que dão testemunho da nossa fé. Essa compreensão, longe de negar a relevância do texto enquanto Palavra de Deus, pode nos conduzir a uma vivência religiosa mais includente e, consequentemente, mais anunciadora do evangelho transformador de Jesus Cristo.

sábado, 2 de junho de 2012

A religião cristã a serviço de Mamom



Por Jurgen Souza


Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom. 
(Mateus 6:24)





Na tradição cultural do povo judeu, de quem o cristianismo herdou as bases religiosas, o termo Mamom (uma transliteração da palavra hebraica que significaria dinheiro ou riqueza) faz referência a uma divindade personificada nos bens materiais. A mensagem trazida por Jesus e que deveria ser norteadora da vivência religiosa do cristianismo adverte claramente que quem é controlado pelo desejo de possuir, numa evidente adoração a Mamom, não pode jamais ser considerado um servo de Deus. Todavia, na contramão dos ensinamentos de Cristo, muitas religiões cristãs da sociedade contemporânea, especialmente as do segmento evangélico, têm assumido posturas ideológicas legitimadoras do neoliberalismo econômico, transformando a fé em mercadoria e fazendo de Mamom o seu verdadeiro deus.
Ao contrário, porém, do que se pode imaginar, essa relação entre o protestantismo e o capitalismo não é recente, mas remonta aos primórdios do movimento protestante, o qual sempre defendeu que uma sociedade que refletisse a glória de Deus estaria diretamente relacionada à dedicação incondicional ao trabalho e à busca pela aquisição de bens. Segundo Max Weber, o espírito capitalista se fortaleceu e se propagou rapidamente amparado nesse pensamento protestante, o qual justificaria a busca desenfreada desse novo grupo de cristãos pela lucratividade e pelo acúmulo de bens, já que o não agir dessa maneira implicaria em desagradar aos planos do próprio Deus. Embora, porém, o capitalismo tenha se constituído a partir da herança da ideologia protestante e das relações sociais estabelecidas por ela, a própria religião acabou se tornando uma mercadoria e servindo aos interesses das elites socioeconômicas, permitindo compreender que a salvação do indivíduo estaria condicionada ao trabalho e à riqueza criada por ele. Karl Marx afirma que esse processo de mercadologização da religião ocorre quando a força de trabalho do indivíduo e a riqueza que ele pode produzir passam a ser exigidas como requisitos para adquirir a salvação oferecida através religião.
Ainda que esse processo de mercadologização da religião por parte do segmento evangélico tenha mesmo raízes históricas, certamente foi na sociedade contemporânea que a transformação da vivência religiosa em mercadoria do sistema capitalista acabou ganhando impulso, já que as religiões ditas protestantes, especialmente as pentecostais e neopentecostais, passaram a assumir posturas ideológicas cada vez mais legitimadoras do neoliberalismo econômico. Ao relacionar a vivência religiosa bem sucedida à realização das aspirações materiais, através da chamada “teologia da prosperidade”, muitas igrejas evangélicas acabam transmitindo a ideia de que, assim como numa relação contratual qualquer, a pessoa que assume o compromisso financeiro por meio dos dízimos e das ofertas pode exigir que Deus a abençoe com aquilo que ela deseja. De acordo com Pierre Bourdieu, uma nova vivência religiosa surge, portanto, nesses tempos pós-modernos, tornando a lógica interna da economia de mercado visível no interior do campo religioso e transformando a relação entre fiéis e igrejas numa relação clientelista, alimentada por uma variedade de produtos e serviços atraentes aos milhões de consumidores da fé que anseiam pela tão propagada ascensão financeira instantânea.
Esse nítido retorno à compra de indulgências, princípio herético veementemente combatido por Lutero nos primórdios do movimento protestante, tem agora o auxílio das estratégias de marketing típicas da mídia televisiva e, com tal veiculação rápida e exponencial, o discurso religioso impregnado de capitalismo tem se tornado uma poderosa ferramenta de dominação ideológica, fazendo com que uma multidão de pessoas, alienada por uma vivência religiosa desprovida de qualquer senso crítico, deixe-se dominar pelos líderes religiosos e pelas instituições eclesiásticas que assumem tal postura. Os testemunhos emocionados transmitidos pela televisão mostram ao público geral os consumidores satisfeitos com os produtos adquiridos, aguçando outros clientes em potencial com as mais variadas ofertas de uma solução imediata que satisfaça suas necessidades e sempre vinculando tais ofertas a um “pagamento” financeiro. Não é à toa, portanto, que essas instituições eclesiásticas apresentem um crescimento vertiginoso no número de adeptos e que, na ânsia por alcançar uma clientela cada vez maior, invistam muito dinheiro para ter mais espaço na mídia televisiva, uma vez que a visibilidade midiática permite uma exposição ainda maior dos produtos oferecidos e atinge um mercado consumidor muito mais abrangente.
De acordo com Peter Berger, quando as pessoas consideram esse discurso religioso impregnado de interesses mercadológicos como a verdade absoluta, refutando qualquer outro discurso que dela divirja, isso demonstra que elas passaram pelo processo de alienação. Justamente por conta desse processo de alienação, acabaram se tornando mais vulneráveis ao poder de dominação dos muitos líderes religiosos mal intencionados, sendo induzidos até a fazer empréstimos bancários para que, por meio das campanhas e dos propósitos constantes, possam ter acesso às bênçãos de Deus. Assim, dominadas por essa ideologia perversa, inúmeras são as pessoas que não medem esforços para participar dos propósitos financeiros, apesar da continuidade das muitas mazelas sociais com as quais convivem diariamente, e sequer questionam o fato de seus líderes religiosos construírem um verdadeiro império enquanto muitos dos que se amontoam nos templos mal conseguem pagar as próprias contas.