segunda-feira, 25 de julho de 2011

À espera de um desconhecido

Por Jurgen Souza
         Antes que você me pergunte, caro leitor, se é mentira ou se é verdade o que este breve relato conta, quero lhe assegurar que esse mal fadado acontecimento poderia ter ocorrido em qualquer outra igreja de classe média de nosso país, mas não é que cismou de ser justamente lá pelas bandas de Brasília! Ah, e desta vez nada tem a ver com os políticos profissionais que habitam o nosso imaginário quando ouvimos falar de tão afamada cidade!
         Foi numa dessas igrejas grandes, ricas e bonitas, cheia de gente importante e digna de nota no jornal. Uma grande notícia trouxera muita esperança e alegria a cada pessoa daquela comunidade de fé: Jesus havia voltado e estava em Brasília. Todos vestiram as melhores roupas e foram à igreja para esperá-lo chegar. Nem mesmo a fina e fria chuva daquela noite de novembro impediu – como acontecia normalmente quando o tempo esfriava – que o templo estivesse lotado. O culto, lá dentro, parecia animado. Os instrumentos, as vozes, as palmas... todos pareciam muito felizes.
         Do lado de fora, um homem negro, barbudo, maltrapilho e com uma mochila nas costas tentava entrar na igreja. Um irmão, que fazia as vezes de recepcionista, tentou convencer o pobre homem de que o templo estava lotado e que eles estavam esperando um convidado muito especial. Pela porta de vidro, era possível notar que até um tapete vermelho estava preparado para a recepção do ilustre visitante. O homem, por sua vez, afirmou que ele era o convidado da noite, mas o rapaz da recepção apenas riu, como quem não o havia levado a sério. Ainda assim, o homem continuou insistindo em afirmar que todos ali estavam esperando por ele, até que foi retirado pelo segurança por estar perturbando a tranquilidade do lugar.

        Agarrado pelo braço, ele gritava: “Eu sou Jesus! Eu sou Jesus!”. Os hinos cessaram por um instante. Cessou-se a alegria. Um momento doloroso de silêncio foi feito, enquanto todos olhavam para trás, mas ninguém o reconhecia ou, o que era ainda pior, ninguém o conhecia. Uns e outros ainda cochicharam entre si que seria mesmo um absurdo um mendigo achar que era Jesus. Poucos minutos depois, passada a confusão, todos voltaram a cantar felizes e continuaram esperando a visita de Jesus. Contam os mais velhos que esperaram por quarenta dias e quarenta noites, até que se cansaram e voltaram para casa. Alguns não esperam mais; outros ainda hoje esperam; ninguém, no entanto, parou para pensar que aquele poderia ser de fato o visitante pelo qual tanto ansiavam.  

domingo, 17 de julho de 2011

Dez ave-marias e cinco pai-nossos

Por Jurgen Souza

                 Como toda cidadezinha do interior, Bom Jardim respirava os ares da tranqüilidade. As poucas casas do lugar abrigavam gente humilde. A única praça era a da igreja, que ficava de frente para o rio. A maior riqueza daquele povo pobre era mesmo o rio. Às margens do São Francisco, qualquer um, por mais pobre que possa ser, ainda assim é rico. Muitos ali mal tinham o que comer, mas não havia um sequer que não se orgulhasse de ter nascido e crescido junto ao Velho Chico. Distante da capital, muito mais ainda do progresso, perdida no sertão baiano, nem luz elétrica havia na cidade. As noites eram iluminadas pelos candeeiros de querosene. Mas o céu, sempre limpo, era o maior espetáculo noturno. As estrelas e, vez em quando, a lua bailavam cintilantes num convite ao romance. Foi ali que conheci o primeiro e único amor da minha vida.
            Eu era ainda uma menina de quinze anos. Bons tempos aqueles! Meu pai era um simples pescador e minha mãe não sabia fazer outra coisa se não cuidar da casa. Morávamos numa casinha de três cômodos – quarto, cozinha e banheiro – feita de taipa. Éramos só eu e eles. Depois de mim, minha mãe não conseguiu mais ter filhos. Éramos pobres, mas nunca nos faltou alimento; comíamos o que o Velho Chico nos dava, e ele sempre nos dava algo. Meu tempo era dividido entre ajudar minha mãe com as tarefas de casa e os estudos na escola. Meus pais não queriam que eu fosse como eles, analfabetos, por isso faziam das tripas coração para me dar ao menos caderno, lápis e borracha. Era o que o parco dinheirinho dava para comprar.
            Ele tinha o dobro da minha idade. Era um forasteiro que se encantou com as lendas ribeirinhas e acabou ficando. Lembro-me com detalhes do dia em que chegou à cidade. Foi num fim-de-tarde do mês de dezembro. Posso até ouvir o vapor apitando na chegada ao cais. Quando o vapor chegava, era um alvoroço só. As crianças todas sempre queriam visitar o barco. Rapazes e moças corriam para a praça, curiosos para conhecer gente nova. Mas meu pai nunca me deixava ir. Dizia que não era coisa para moça de família. Foi da janela lá de casa que o avistei, de longe, pela primeira vez. Estava indo em direção à pousada de dona Mariazinha, a única da cidade. Era um historiador recém-formado, mas, como ninguém sabia o que era isso, todos o chamavam de professor. E foi o que ele acabou sendo quando decidiu ficar. Ensinava história no colégio da cidade. A já comum falta de livros didáticos não foi problema para ele; nunca precisou deles. Ensinava àquele povo uma história que livro nenhum contava: a deles. Foi ele também que deu a idéia de comprar lamparinas a gás para que pudesse ter aula à noite. Em pouco tempo, Eduardo havia se tornado uma das pessoas mais queridas da cidade.
            No meu primeiro dia de aula com ele, passei o tempo inteiro apreciando sua beleza. E esse não era um privilégio meu. Todas as meninas suspiravam por ele. Mas foi num dia ensolarado de domingo, quando voltava da beira do rio – havia ido apanhar uns peixes que meu pai pescara para o almoço –, que tudo começou. Vinha tão distraída com o balaio de peixes que não o vi aproximar-se. Quando ele falou meu nome, perdi as forças e os peixes caíram ao chão. Ele, gentilmente, restituiu-me os peixes ao balaio. Ficamos nos olhando silenciosamente, por alguns segundos, até que lhe disse que minha mãe estava à minha espera para terminar o almoço. Daí para nosso primeiro encontro, ainda se passaram alguns meses. Eu não era uma moça espevitada, e ele era muito discreto.
            Encontramo-nos, por fim, ao raiar do dia. Ele havia deixado, no dia anterior, um bilhete na minha carteira, junto à prova. Eu tive que dizer à minha mãe que estava indo para uma aula de educação física. O local do encontro era debaixo de um velho cajueiro, perto de um campinho de futebol. Tremia como bambu, mas bastou que ele segurasse minha mão para devolver-me a tranqüilidade. Como não sabia muito bem o que dizer numa hora como aquela, pedi-lhe um beijo. Nunca havia beijado alguém antes, e a sensação foi a de ter nascido exatamente naquele instante. E nasci mesmo; para a vida, para o amor. Os encontros, pouco a pouco, foram-se tornando habituais, mas, à medida que o tempo passava, precisávamos de um lugar reservado, longe dos olhos e da língua afiada de todos. Ele, então, resolveu sair da pousada e alugou uma casa perto da minha, para facilitar as coisas. Estávamos apaixonados um pelo outro. Eu talvez demonstrasse mais, muito mais.
            Nada, porém, parece ter marcado mais minha vida do que a primeira vez que fizemos amor. Eu era totalmente inexperiente. Nunca nem havia conversado sobre essas coisas com ninguém. Tinha medo de engravidar ou adoecer ou qualquer outra coisa. Tinha medo de doer – ouvi, certa vez, escondida atrás da porta, minha mãe dizendo à comadre Sininha que doía e muito. Mas ele me explicou tudo com paciência e me disse que só faria quando eu lhe pedisse. Eu quis por diversas vezes, mas nunca lhe pedi, até que um dia o calor do corpo falou mais alto e praticamente supliquei. Pode parecer até heresia dizer isto, mas foi divino. A partir de então, não havia um encontro em que eu não fosse assim toda dele e ele assim todo meu.
            Certo dia, ao término do encontro, ele contou-me a respeito dos comentários que havia escutado sobre nós. Estava preocupado com minha reputação, afinal eu era moça de família e meus pais não faziam idéia do que estava acontecendo. Afirmou que seria difícil, mas que talvez fosse melhor que ficássemos algum tempo sem nos encontrar. Se os falatórios continuassem e chegassem aos ouvidos do meu pai, poderia suceder uma desgraça. Confortou-me num longo abraço, dizendo-me que eu era forte e que não tardaria para que as coisas se acalmassem e voltássemos a nos ver. Despedi-me, então, com os olhos lacrimosos, mas com a esperança de que, apesar de penosa, a distância não seria duradoura. Ademais, o que ele me havia dito parecia ser mesmo verdade, pois minha mãe e até meu pai vieram-me com umas perguntas estranhas, que, a princípio, não me denunciavam, mas poderiam ser indícios de desconfiança.
            O que jamais poderia imaginar, porém, era que sofreria tanto com essa separação. Sem vê-lo por tantos dias, comecei a entristecer-me deveras. A tristeza, com o tempo, tornou-se em mal-estar. Os enjôos se sucediam um ao outro, até que, dando-me por conta, percebi que estava grávida. Gerava em meu ventre o fruto do nosso amor. Essa descoberta, no entanto, deixou-me apreensiva. Meus pais não poderiam saber, não tinha ninguém com quem pudesse me aconselhar, tampouco sabia o que fazer. Não me restava outra possibilidade, se não procurá-lo para encontrarmos uma saída para a situação.
            Fui, então, à sua casa, não para mais um encontro amoroso, mas para decidir o destino de minha vida. Todavia a cena que presenciei traçou, em questão de segundos, todo o meu destino. Eduardo estava nos braços de outra aluna do colégio, talvez lhe dizendo todas as palavras doces que um dia me disse ou ensinando-lhe o caminho da felicidade, como ensinou a mim. A dor insuportável que senti fundiu-se ao ódio visceral que emergia de mim, tornando-me ensandecida. Sem que fosse vista por eles, apossei-me da peixeira que estava na cozinha e invadi o quarto, golpeando-lhe o peito. A moça, coitada, desmaiou de medo. Enquanto ele agonizava no que havia sido o nosso leito de amor, contei-lhe, sussurrando ao ouvido, sobre a gravidez. Mas não permiti que dissesse palavra. Virei as costas e fui embora. Sequer voltei em casa; cortei caminho por entre os matos e cheguei à estrada.
            Não foi fácil, para mim, guardar esse segredo durante todos esses anos. Hoje, Bom Jardim já não é mais tão pequena e tranqüila assim. O progresso há muito já chegou por lá. Mas eu precisava ao menos desabafar com alguém, retirar dos meus ombros o pesado fardo que carrego comigo desde que vim embora. Confesso que matei o único homem que amei de verdade em toda a minha vida, mas não me arrependo. Se tivesse de matá-lo novamente, não hesitaria. Meu maior pecado, porém, e essa é a culpa que carrego, é que matei a mim mesma. Acabei, de uma vez por todas, com qualquer possibilidade de ser feliz. Estou viva porque ainda respiro, mas no fundo, no fundo não é assim que me sinto. Estou preparada para pagar pelo que fiz. E para encerrar logo este assunto, diga-me, padre, qual será minha penitência?

domingo, 10 de julho de 2011

Álbum de Família

Por Jurgen Souza

            A vida corrida da cidade grande muitas vezes nos impede de enxergar o outro. Estamos quase sempre tão apressados que acabamos por nos tornar egocêntricos. Um único momento, porém, que pararmos para observar à nossa volta, certamente nos surpreenderemos com as histórias que desfilam estampadas em cada rosto nas movimentadas avenidas, nas intermináveis filas do banco ou nos vagões lotados do trem. Foi uma dessas histórias marcantes que mudou minha vida e abriu meus olhos para o fato de que as pessoas são muito mais do que parte de um cenário que compõe uma metrópole como São Paulo.
            Fazia vinte anos que eu trabalhava na Estação da Luz. O cotidiano agitado daquela velha estação de trem era fatigante. Milhares de pessoas passavam por ali todos os dias. A bilheteria, sempre lotada, consumia meu tempo e minhas forças. O período de descanso era curto e destinado unicamente ao almoço, que trazia pronto de casa, para economizar o vale-refeição. Sabe como é, vida de pobre é assim: faz-se de tudo para poupar uns trocados e tentar encher o carrinho no supermercado. Casado, com dois filhos, morava na Vila Prudente, numa casinha erguida com muito suor e com a ajuda de minha esposa, que costurava para fora. O que ganhava era pouco, mas ao menos era dinheiro certo.
            Havia na estação uma senhora que passava o dia sentada num banco, como a esperar um trem. Estava ali há mais de cinco anos. Todos a chamavam de louca, mas eu me limitava a ignorá-la. Durante todo esse tempo, muitos boatos surgiram entre os funcionários a respeito daquela mulher. Hipóteses das mais diversas foram levantadas sobre sua história de vida, entretanto ninguém jamais ousou aproximar-se dela. Quando um ou outro colega perguntava minha opinião, respondia que tinha muito mais coisas a me preocupar e que pouco me importava se era uma prostituta ou a rainha da Inglaterra.
            Tempos mais tarde, acabei cedendo à curiosidade. Num daqueles dias em que estamos mais interessados em bisbilhotar a vida alheia do que em trabalhar, a imagem daquela mulher não me saía da memória. Durante o almoço, passei alguns minutos a observá-la. Era uma senhora de seus setenta anos, cabelos grisalhos e longos, um tanto alta e magra. Usava um vestido velho de chita e trazia consigo uma bolsa. Passava quase todo o tempo sentada no banco, mas, de quando em quando, levantava-se e punha-se a andar de um lado para o outro. Depois, voltava e se assentava novamente. Por um instante, tirou da bolsa um papel que aparentava ser uma carta e debruçou-se na leitura, porém não demorou a guardá-lo outra vez.
            Terminado o meu horário de almoço, voltei ao trabalho, mas parecia ainda mais interessado na história da mulher. Passei a tarde imaginando mil e uma coisas, entretanto nada comentei com os colegas. Não queria que ninguém soubesse desse meu súbito interesse por aquele caso. Foi difícil até me concentrar no trabalho, pois minha mente já estava tomada pela curiosidade. Estava decidido a buscar uma aproximação e, quem sabe, conversar com ela. O tempo, porém, parecia custar a passar, o que me deixava apreensivo. Temia não a encontrar quando saísse da bilheteria. Era um temor sem motivo, porque sabia que, na verdade, ela não sairia de lá. Mesmo assim temia.
            Enfim, os ponteiros do relógio cravaram cinco horas, e pude sair à procura de respostas às minhas indagações. Desci rapidamente as escadas de acesso à plataforma, buscando com meus olhos identificá-la no meio da multidão que entrava e saía do trem, naquele horário de tanto movimento. Só depois que o trem partiu é que a avistei, sentada no mesmo banco, que já era tão seu, balbuciando algumas palavras aparentemente sem nexo. Cuidadosamente me aproximei e sentei ao seu lado. Passei ainda alguns instantes calado, sem saber como iniciar uma conversa, até que tomei coragem e iniciei o diálogo.
            –– A senhora está esperando um trem?
            –– Aqui tem mais gente que trem, moço.
            –– Ah, então está à espera de alguém?
            –– Meu marido pediu para que eu esperasse aqui.
            –– E a senhora não tem outros parentes, não?
            –– O senhor é da polícia, é?
            Aquela pergunta deixou-me tão sem jeito que, aproveitando a chegada de um trem, levantei-me imediatamente e embarquei. Fui o trajeto todo pensando na situação daquela senhora. Estava ali há tanto tempo. Será que tinha onde dormir, o que comer? Um raro sentimento de piedade começou a brotar em mim, mas logo me refiz e voltei à minha condição de homem embrutecido pela dureza da vida. Não tinha nada que me preocupar com uma velha louca, que estava há cinco anos esperando um marido que eu nem sabia se existia mesmo. Havia muitos problemas que necessitavam de solução urgente, e eu ali a desperdiçar meu tempo com essas histórias!
            Desci do trem na Estação São Caetano e fui andando para casa. Os trinta minutos de caminhada eram já habituais, mas sempre aproveitava para refletir um pouco sobre minha vida. Lembrei-me de meu pai. Ele morrera de câncer há alguns anos. Estava muito doente, porém não tínhamos como pagar um hospital particular, e o público não tinha vagas para internação. Morreu em casa mesmo, contando somente com nosso carinho e apoio. Gastamos tanto com remédios que até hoje ainda luto para pagar as dívidas. Estava preocupado, também, com os estudos dos meninos; estudavam em escola pública, mas era janeiro e tinha uma extensa lista de material escolar que deveria ser comprado. É, a situação não era das melhores!
            Cheguei em casa exausto. Minha esposa indagou-me por que a demora, afinal já eram quase oito da noite. Disse-lhe que havia ficado de conversa com um colega de trabalho e não percebi o tempo passar. Ela resmungou um pouco, deixando-me impaciente. Nada que um bom banho não resolvesse. Ao sair do banheiro, parecia estar mais leve, menos irritadiço, e pudemos, então, jantar tranqüilamente em família. Os meninos foram-me por diversão após o jantar, enquanto tentávamos montar um quebra-cabeça que lhes havia dado de presente no natal. Não demorou e já era hora de dormir. O despertador tocaria às seis da manhã, tirando-me da cama para mais um dia de trabalho.
            Deitei-me ao lado de minha esposa e dei-lhe um abraço, como quem pede desculpas. Recebi dela um beijo que me pareceu selar as pazes. E assim, abraçadinhos, passamos um bom tempo. Eu tentava dormir, no entanto a mente teimava em ocupar-se com pensamentos desnecessários. Era a história daquela senhora que me atormentava de novo. Virei de um lado a outro da cama, mas definitivamente não conseguia dormir. O corpo cansado exigia um descanso; a mente rebelde, porém, insistia em desobedecer. Quando enfim peguei no sono, fui acordado com o barulho irritante do despertador.
            Levantei sonolento, tomei o café que minha esposa preparou, peguei a marmita para o almoço e fui trabalhar. Aquela sexta-feira não começou muito bem, mas pelo menos era o último dia de trabalho da semana. Na bilheteria da estação, o tempo andava num ritmo amuado, enquanto o trabalho se dava de modo cansativo. Era um dos dias de maior movimento na Luz. Durante o almoço, fui tentado a espiar a velha senhora, mas consegui conter minha curiosidade, o que não aconteceu quando o expediente deu-se por encerrado.
            Não foi fácil vencer a vergonha, depois da frustrada tentativa de aproximação do dia anterior. Fiquei, primeiramente, observando-a de longe e preparando uma forma de iniciar a conversa sem inibi-la, como ocorreu antes. Era, de fato, uma situação delicada, mas precisava matar minha curiosidade, e não haveria nada que me impedisse de fazê-lo. Por isso, tomei a iniciativa de me aproximar e puxar conversa.
            –– Boa tarde! Quero lhe pedir desculpas por ontem. Estive aqui conversando com a senhora, mas acabei por ir embora sem me despedir, lembra?
            –– Lembro. O moço da polícia...
            –– Não, eu não sou da polícia. Na verdade, sou alguém que está preocupado com a senhora. Não precisa ter medo, pode confiar em mim.
            –– Tem palavra, moço, que a boca da gente inventa só pra confundir a cabeça.
            Querendo me desviar daquela afirmação tão contundente, imendei a conversa, de supetão, com outra pergunta.
            –– Como é seu nome?
            –– Antonieta.
            –– Faz tempo que a senhora espera seu marido?
            –– Pra mais de cinco anos.
            –– Onde a senhora dorme e faz as refeições?
            –– Como o que um ou outro passageiro me dá e durmo aqui mesmo, neste banco. Não conheço ninguém na cidade, a não ser meu marido.
            –– Seu marido ainda vem?
            –– Um dia ele vem!
            –– Às vezes, vejo a senhora com uma carta na mão. É do seu marido?
            –– Não. É uma carta que escrevi a meu filho. Meu marido o tirou de mim ainda muito novinho e veio pra cá. Depois de muitos anos, ele escreveu para uma vizinha dizendo que eu viesse ver meu filho e mandou que esperasse aqui.
            –– Posso ler a carta?
            Ela retirou da bolsa aquele papel amarelado e entregou-me com um cuidado de quem teme ser roubada. As letras mal traçadas e os vários erros gramaticais não diminuíam o amor materno que me levou às lágrimas ao término da leitura. Na carta, ela dizia ao filho que não se preocupasse, pois não iria deixá-lo como bezerro desmamado. Dizia ainda que o amava e que amor de mãe não mede tempo nem espaço. Emocionado com aquelas palavras que nunca escutara na vida, não contive o choro. Meu pai falava pouco de minha mãe; dizia que ela havia morrido no parto e que eu era a única coisa boa que deixara.
            Tomado por um sentimento de filho que me invadiu o peito naquele instante, convidei-a para passar o fim-de-semana em minha casa. Ela, porém, disse que não poderia, pois tinha de esperar o marido. Disse-lhe, então, que seu marido não viria mais. Essa revelação deixara dona Antonieta em completo desespero, uma vez que a esperança de reencontrar o marido e o filho era o que a impulsionava a viver. Ela se apegara ao tênue fio da esperança para não cair no abismo da esquizofrenia, e agora eu o havia partido de vez. Seu silêncio só foi quebrado com a resposta positiva ao meu convite, mas logo foi retomado.
            Fomos calados até em casa. Quando cheguei, contei toda a história à minha esposa, e ela também se comoveu. Conseguimos um colchão e umas roupas usadas com a vizinha. Dona Antonieta tomou banho, como há muito não fazia, e jantou conosco à mesa. Não deu uma palavra durante o jantar, mas bastava olhar o seu rosto para perceber que o abatimento e a desilusão se faziam presentes. Colocamos o colchão em que dormiria no quarto dos meninos. Antes de deitar-se, porém, ela agradeceu a hospitalidade, deu-me um abraço afetuoso e disse que toda mãe gostaria de ter um filho assim. Eu, emocionado, disse-lhe que todo filho também gostaria de ter uma mãe como ela. Fui dormir ainda com a doce sensação daquele abraço materno que me enchia de uma felicidade indescritível.
              No dia seguinte, acordei tarde, afinal era sábado e precisava descansar após uma semana intensa como aquela. Dona Antonieta ainda dormia; deveria estar mesmo muito cansada. À hora do almoço, resolvi acordá-la, chamando-a da porta do quarto. Ela, entretanto, não esboçou reação. Entrei no quarto, aproximei-me e chamei-a, sacudindo-lhe o braço. A velha senhora estava morta, e eu nada poderia fazer para acordá-la. Refeito do susto, decidi, então, vasculhar sua bolsa à procura de documentos que pudessem ser úteis para conseguir um atestado de óbito, mas qual não foi a minha surpresa? Lá estavam a identidade, a certidão de casamento e a certidão de nascimento do filho. Custei a acreditar no que os meus olhos viam. Aquele foi, certamente, o momento mais importante da minha vida. Na verdade, seu nome era Aurora; seu marido se chamava Pedro; e seu filho era eu.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Entre a lei e a graça: chamando Jesus para o debate

Por Jurgen Souza


            Considerado uma vitória na luta pelo respeito à diversidade e pela igualdade de direitos das minorias sociais, o reconhecimento por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, garantindo-lhes os mesmos direitos e deveres dos casais heterossexuais, acabou gerando uma grande mobilização das lideranças evangélicas, encabeçada pelos mais populares pregadores da mídia. Os protestos abrangiam outros temas, mas concentravam-se estrategicamente na decisão do STF e na possível aprovação pelo Senado do polêmico Projeto de Lei nº 122/2006, que criminaliza “a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, punindo tais crimes na forma da lei”. Longe de querer ajuizar a respeito das questões legais imbricadas nessa problemática, o presente texto deseja, na verdade, partir desse fato real que envolve a sociedade brasileira contemporânea para chegar a uma discussão mais centrada no comportamento esperado de um autêntico discípulo de Jesus em contextos de discriminação, exclusão e opressão social, enfocando a relação lei versus graça.
            Tomando por base diversos trechos da bíblia, principalmente os retirados das cartas paulinas, a questão da divergência entre a lei e a graça é um dos pontos mais recorrentes no discurso das igrejas evangélicas. Constitui-se uma verdade entre os cristãos evangélicos o fato de que todo e qualquer ser humano precisa da graça de Deus, uma vez que não há ninguém que possa alcançar a salvação por merecimento próprio ou por algum outro meio (Efésios 2:1-9). Do mesmo modo, os cristãos evangélicos consideram como verdade o fato de que, uma vez alcançado pela graça de Deus, o ser humano não deve estar mais sob a égide da lei, buscando ter posturas e ações que evidenciem entre os homens a condição de estar “debaixo da graça” (Romanos 6:15). Antes que alguém pense em dizer que tais leis eram apenas religiosas, vale aqui a ressalva de que, numa sociedade teocrática como a daquela época, as leis religiosas eram também as leis sociais.
Para não ficar restrito às cartas paulinas, as quais fazem na verdade uma releitura das narrativas dos evangelhos, é possível perceber claramente nas posturas e ações do próprio Jesus esse posicionamento em favor da graça. A respeito da lei, ele diz que veio cumpri-la e não destruí-la (Mateus 5:17), mas faz duras críticas a escribas e a fariseus por negligenciarem o mais importante dela, que é agir com justiça, com misericórdia e com fé (Mateus 23:23). Contudo, foram as atitudes de Jesus frente a situações polêmicas diante da lei que evidenciaram sua opção pela graça, levando-o a ser questionado, em vários momentos, pelos religiosos da época acerca de questões do cotidiano, principalmente as que envolvessem a prática da lei. Em geral, seu posicionamento expressava a ideia de que, ainda que estivesse escrito na lei, nada que atentasse contra a vida e a dignidade do ser humano tinha razão de ser, mesmo porque toda a lei se resumia em “amar a Deus e ao próximo” (Mateus 22:37-40), como se pode observar no seu encontro com a mulher apanhada em adultério (João 8:1-11) e na cura de um homem acometido de lepra (Lucas 5:12-14). 
A lei da época era taxativa nos casos em que uma pessoa fosse pega em adultério, condenando-a sumariamente à morte por apedrejamento em praça pública (Levítico 20:10). Quando os defensores da lei apresentaram a Jesus aquela mulher, já tão humilhada por estar sendo exposta publicamente e tão sem esperança por ter conhecimento da sanção a que estava sujeita, talvez esperassem dele a mesma atitude autoritária de outros líderes religiosos, optando pelo rigor da lei. Ao contrário, porém, Jesus, depois de um breve silêncio, ousou conduzi-los a se colocarem em lugar daquela mulher, evidenciando que, mesmo não concordando com as ações que ela havia praticado, todos eles compartilhavam igualmente com ela da condição de falibilidade humana e, nesse sentido, eram todos igualmente carentes da graça de Deus. Sua opção pela graça ao invés da lei priorizava, então, a preservação da vida humana, retornando aos mandamentos principais da própria lei.
Da mesma forma, a lei também era implacável nas situações que envolvessem alguém acometido de lepra. Criada inicialmente por uma questão de saúde pública, com o intuito de evitar a proliferação de uma doença até então sem cura, tal lei condicionava a pessoa leprosa a um contexto de evidente exclusão social e a expunha de forma vexatória diante de todos, uma vez que tal pessoa era obrigada a viver isolada à margem da cidade e, quando alguém tentasse se aproximar, deveria deixar clara a sua condição de excluída, gritando bem alto “Imunda! Imunda!”, para que ninguém a tocasse (Levítico 13:45-46). No seu encontro com aquele homem leproso, Jesus, ao contrário do que se esperava de um líder religioso da época, fez questão de estender a mão e tocar nele, realizando seu desejo de ser curado daquela enfermidade que, para além das limitações físicas, impunha-lhe dolorosas limitações sociais. Demonstrando a clara intenção de retirar aquele homem da segregação social à qual estava exposto, Jesus, depois de curá-lo, orienta-o a mostrar-se ao sacerdote e a oferecer o sacrifício devido para a purificação, já que a lei preconizava que somente o sacerdote, após a oferta do sacrifício, poderia considerá-lo puro e reinseri-lo no convívio social (Levítico 14:1-20). Ao optar pela graça em lugar da lei, Jesus dava, então, prioridade à restituição da dignidade humana perdida por conta do flagrante processo de exclusão e opressão social.   
O exemplo deixado por Jesus, e que deveria ser seguido por aqueles que se dizem seus discípulos, é o de fazer sempre uma opção pela graça, principalmente diante de situações em que a lei atente contra a vida e a dignidade humana, mas a vivência cotidiana dos cristãos evangélicos em meio à pluralidade do mundo contemporâneo tem revelado, salvo algumas poucas exceções, comportamentos fundamentalistas e excludentes, que em nada lembram as ações de Cristo. No que tange à decisão do STF e ao Projeto de Lei nº 122/2006 que tramita no Senado, cabe refletir sobre o que levou as autoridades nacionais a buscar resguardar a igualdade de direitos desse grupo de cidadãos brasileiros.  Sem sombra de dúvidas, foi a inegável existência de ações discriminatórias por porte de toda a sociedade brasileira – incluindo o segmento evangélico – em relação aos homossexuais que conduziu o órgão máximo da justiça brasileira a tomar tal decisão e o Congresso Nacional a debater leis que combatam o preconceito. Não se trata aqui, de maneira alguma, de defender essa ou aquela bandeira, mas de se pensar a respeito da propagação entre os homens da graça de Deus por intermédio das ações dos discípulos de Jesus Cristo, pois somente uma sociedade carente de ações práticas reveladoras da graça de Deus é que precisa recorrer à criação de leis e sanções específicas para coibir a discriminação, a exclusão e a opressão social.