quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Um paralelo entre a reflexividade no português popular brasileiro e em algumas línguas crioulas

Por Jurgen Souza


Compreender o processo de reflexivização presente no português brasileiro não é, de fato, tarefa das mais simples, visto que muitas construções compreendidas como reflexivas parecem não apresentar características típicas de reflexividade ou, ao menos, parecem apresentar níveis de reflexividade bastante distintos. Não se pode dizer que frases como “O ladrão se enforcou”, “O copo se despedaçou” ou “O culpado se arrependeu” – só para citar alguns exemplos – explicitem o mesmo nível de reflexividade da ação verbal, ainda que a tradição gramatical insista em considerá-las indistintamente como estruturas reflexivas. Procurando explicar o surgimento do processo de variação existente nas estruturas ditas reflexivas do português brasileiro – especialmente em suas variedades populares – por meio do contato entre línguas ocorrido no período da colonização, o presente texto procurou traçar um paralelo entre as estratégias de reflexivização utilizadas no português popular brasileiro e em algumas línguas crioulas.
As línguas crioulas costumam utilizar diversas estratégias na construção das estruturas ditas reflexivas. Nos chamados crioulos do Atlântico, de acordo com o pesquisador Mikael Parkvall, existem várias estratégias de reflexivização, mas parece haver uma preferência dos falantes pelo uso de uma expressão anafórica cujo significado literal é corpo ou o nome de uma parte do corpo, como ocorre no exemplo em (1), retirado do crioulo haitiano. Segundo ele, a utilização desse tipo de expressão seria fruto da influência da língua dos povos dominados, apesar de o termo gramaticalizado ser de origem da língua do povo dominador, principalmente no caso dos crioulos de base lexical francesa.
(1)      Matant pann kor
Minha tia enforcar corpo (tradução literal)
Minha tia se enforcou
No crioulo caboverdiano, de acordo com a pesquisadora Fernanda Pratas, o contexto de reflexividade é caracterizado pelo uso da expressão anafórica kabesa, como ocorre em (2), e o contexto de reciprocidade é caracterizado pelo uso da expressão anafórica kunpanheru, como ocorre em (3), ambas resultantes dos processos de relexificação e reanálise, comuns em situações mais radicais de contato linguístico. No caso específico do contexto de reflexividade, é possível também que o aspecto reflexivo seja reforçado pela inserção de um determinante possessivo (nha; bu; di nho; di nha; si; nos; nhos; ses) antes da expressão kabesa, como ocorre em (4).  
(2)      Djon mata kabesa
João matar cabeça (tradução literal)
João se matou
(3)      Es gosta (di) kunpanheru
Eles gostar (do) companheiro (tradução literal)
Eles gostam um do outro
(4)      Djon mata si kabesa
 João matar sua cabeça (tradução literal)
João se matou
Todavia, a pesquisadora chama a atenção para o importante fato de que, quando o sujeito sintático não é simultaneamente agente e paciente da ação verbal, é comum ocorrer a não-realização da expressão anafórica ou de qualquer elemento explícito que possa evidenciar o contexto de reflexividade, como acontece em (5) e (6).
(5)      Pedru xinta Ø
Pedro sentou (tradução literal)
Pedro se sentou
(6)      Pedru perdi Ø
Pedro perdeu (tradução literal)
Pedro se perdeu
Nos crioulos do Golfo da Guiné – Santomense, Angolar, Principense e Fa d’Ambu –, de acordo com o pesquisador Tjerk Hagemeijer, existem várias estratégias de reflexivização, porém a mais recorrente delas é caracterizada pelo uso de uma expressão anafórica crioula de origem Edo[1] cujo significado literal é corpo, como ocorre no exemplo em (7) – retirado do Santomense – e no exemplo em (8) – retirado do Angolar.
(7)      So n ga mata ubwê mu
Então eu vai matar corpo meu (tradução literal)
Então eu vou me matar
(8)      Ê mata ôngê
Ele matar corpo dele (tradução literal)
Ele se matou

Como as línguas crioulas são resultantes de um processo de transmissão linguística irregular[2] mais intenso, tais estratégias de reflexivização estariam relacionadas à reestruturação gramatical ocorrida, em geral, por conta da perda de elementos gramaticais que acontece no primeiro estágio do contato linguístico, ocasionando – por meio da reanálise e da relexificação – a gramaticalização de itens originais para desempenhar as funções dos elementos que se perderam, conforme se observa nas estruturas reflexivas das línguas crioulas acima citadas, as quais utilizam um substantivo que se refere ao “corpo” ou à “cabeça” para desempenhar a função de partícula reflexivizadora.
Para os pesquisadores Dante Lucchesi e Alan Baxter, os pronomes ditos reflexivos, como são morfemas gramaticais livres, estariam entre os elementos gramaticais que se perdem nos momentos iniciais do contato entre línguas, mas, no caso do português popular brasileiro, o processo de transmissão linguística irregular ocorrido foi de tipo leve, ocasionando, ao invés da gramaticalização de itens originais, uma profunda variação dos elementos gramaticais da língua alvo na nova variedade que se formou dessa língua, conforme se observa nos exemplos em (9), (10) e (11).
(9)      Nós se encontrou na casa de Pedro.
(10)  Tiago ainda não se arrependeu-se do seu erro.
(11)  Bianca Ø casou ontem.


           Acerca dessas variantes, pode-se dizer que, nas estruturas reflexivas do português popular brasileiro, os pronomes ditos reflexivos que possuem menos valor informacional seriam mais suscetíveis ao apagamento, ao passo que os pronomes que possuem mais valor informacional seriam mais resistentes a ele. Pode-se dizer ainda que o pronome reflexivo utilizado nos contextos em que não haja concordância verbo-sujeito é, em geral, o pronome “se”, mesmo quando esteja fazendo referência à primeira pessoa.


[1] A palavra “corpo” que aparece nas estruturas ditas reflexivas de outras línguas crioulas que utilizam a mesma estratégia de reflexivização deriva sempre de uma língua europeia, como acontece, por exemplo, com o crioulo haitiano. Nos crioulos do Golfo da Guiné, porém, tal expressão anafórica tem origem Edo, evidenciando, portanto, uma clara influência do substrato.
[2] O processo de aquisição precária de uma segunda língua por uma coletividade de falantes adultos, sem instrutores ou escolas, e sua posterior socialização e nativização nessa coletividade. Em situações mais intensas, gera um a língua crioula, diferente das outras línguas que entraram em contato; em situações menos intensas, gera uma nova variedade de uma das línguas que entraram em contato, em geral da língua do grupo dominante.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Não me envergonho do evangelho, mas morro de vergonha dos evangélicos

Por Jurgen Souza

Na sua origem grega, a palavra ευαγγέλιον significava "boa notícia", "boa mensagem" ou "boa nova" e foi usada no texto bíblico para fazer referência aos ensinamentos trazidos por Jesus, considerados uma boa notícia ao povo israelita, o qual esperava há tanto tempo pelo messias que traria a salvação da qual tanto os israelitas necessitavam. Para muito além disso, a boa notícia era que Deus se importava com a humanidade e desejava relacionar-se com ela, a ponto de tornar-se humano e habitar entre nós. Todavia, as vivências da sociedade contemporânea têm propiciado distorções graves e inadmissíveis com relação ao que é, de fato, evangelho e, como já aconteceu em outros momentos da história, ações cruéis e desrespeitosas têm sido propagadas em nome de Deus, sob a suposta alegação de se estar pregando o evangelho. Foi exatamente isso que aconteceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, onde uma igreja evangélica espalhou outdoor's com mensagens bíblicas selecionadas para ofender os homossexuais, às vésperas da 7ª Parada do Orgulho Gay no município.
O pastor da igreja responsável pelos cinco outdoor's espalhados pela cidade, um deles inclusive no trajeto em que passaria a passeata organizada pelos homossexuais, assegurou que não via como provocação ou ofensa as mensagens veiculadas. Não foi o que entendeu a justiça, que ordenou a imediata retirada das mensagens e ameaçou multar a igreja em R$ 10 mil, caso a ordem não fosse cumprida. Contudo, ainda que não houvesse ofensa nas mensagens, não parece nenhum pouco respeitoso e nem mesmo prudente propagar tais ideias em meio a uma passeata que reuniria milhares de pessoas que não compartilham do mesmo pensamento. Mesmo que fosse com a melhor das intenções, uma ação como essa poderia desencadear uma retaliação até mesmo violenta, com a invasão ou a depredação de igrejas evangélicas em geral por parte dos grupos que se sentissem ofendidos.
O que é mais intrigante, porém, nesse ato de irresponsabilidade cometido por essa igreja é que quase todos os dias alguns dos líderes evangélicos mais conhecidos no país bradam aos quatro cantos que as igrejas evangélicas são alvo de perseguição e desrespeito, alegando inclusive que, se o Estado é laico, seria imprescindível respeitar a diversidade religiosa. Contraditoriamente, no entanto, é justamente do segmento evangélico que vêm as mais gritantes ações de desrespeito à diversidade e aos direitos da liberdade de expressão. Aliás, foi justamente a essa liberdade de expressão que o pastor se apegou para se justificar. Segundo ele, os evangélicos estariam apenas “aproveitando a oportunidade que eles estão divulgando a maneira de viver deles para expressar o que Deus diz a respeito”, mas não há dúvida de que um ato como esse pode ser classificado minimamente como de mau gosto e, se for levado mais a sério, configura um tremendo desrespeito ao direito de o outro manifestar sua opinião, já que, como bem disse uma das responsáveis pelo evento, “Todos os seres humanos têm direito a expressar o que quiserem, mas têm o ano todo para fazer isso. Fazer na semana da diversidade é uma maneira de ataque, não tinha essa necessidade.
O pastor da igreja responsável pelos outdoor's ainda afirmou que os evangélicos amam “essas pessoas (se referindo aos homossexuais), mas a forma que elas vivem está contrária àquilo que Deus diz”. Diante de tal afirmação, cabe questionar: por que não fazer, então, um outdoor falando desse amor? Talvez quando os evangélicos – e não falo isso me excluindo desse grupo – proclamarem mais o amor de Deus ao mundo por meio de suas ações, sendo usados como instrumento da graça redentora que alcança o outro sem precisar desrespeitá-lo, quem sabe o evangelho não seja uma “boa notícia” para essa humanidade já tão atolada em más notícias?

sábado, 6 de agosto de 2011

As aparências enganam

Por Jurgen Souza

            Um dos aspectos mais valorizados no mundo contemporâneo é a imagem. Vivemos em um tempo em que não importa muito o que você de fato é, mas sim o que você parece ser. O cotidiano por demais agitado em que estamos inseridos não nos permite desenvolver relações mais profundas e acaba nos conduzindo a enxergar o outro apenas superficialmente. Por conta disso, as relações humanas estão cada dia mais marcadas pelo preconceito (um conceito formado antes de se ter uma visão mais aprofundada), evidenciando nossa clara preferência pelas aparências.
Até mesmo – e, por que não dizer, principalmente – os cristãos, que foram orientados por Jesus a vivenciar uma dimensão mais profunda de relacionamento com o outro (João 15:12), têm optado por valorizar somente as aparências. Todavia, como podemos perceber através do filme “A luz da escuridão” – anexado propositalmente a este texto –, as aparências enganam. Infelizmente, porém, o meio cristão está repleto de pessoas que se deixam enganar pelas aparências, acreditando piamente que Deus só pode manifestar sua graça por intermédio daqueles a quem julgamos – em geral pelas evidências externas – "santos".
Por conta do preconceito religioso, acabamos limitando o agir do Deus que nós mesmos dizemos acreditar que pode todas as coisas, esquecendo-nos de que, para muito além das aparências, Ele vê o coração (1 Samuel 16:7b). O mais impressionante, contudo, é que tal atitude preconceituosa por parte de muitos cristãos revela o desconhecimento ou o não-entendimento da orientação que o próprio Jesus deu a esse respeito, como relata o texto bíblico de Lucas 10:25-37. Nessa passagem bíblica muito lida entre os cristãos, Jesus dialoga com um homem religioso que deseja saber como ter a vida eterna e é orientado por Jesus a cumprir o que a lei diz: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com todo entendimento, e o próximo como a ti mesmo”. Aquele homem religioso, sabendo que, mesmo sendo doutor da lei, não a cumpria na prática, pergunta então a Jesus como saber quem seria o “próximo” que a lei determina que devemos amar, e Jesus responde contando uma parábola (história usada para facilitar o entendimento).
A parábola usada por Jesus envolve três personagens muito conhecidos no universo religioso daquele homem: um sacerdote, um levita e um samaritano. O sacerdote era um líder religioso importante, responsável – na religião judaica – por receber a mensagem de Deus numa parte reservada do templo, chamada de santo dos santos, e depois transmiti-la ao povo. O levita era um ajudante do sacerdote, responsável por preparar o altar para os holocaustos (sacrifícios), comuns na religião judaica. O samaritano – habitante da cidade Samaria – fazia parte de um povo considerado idólatra com quem os judeus tinham uma antiga rixa (João 4:9b). Na verdade, houve um tempo em que a cidade de Samaria pertencia aos judeus, mas foi invadida pelo império assírio por volta do ano de 722 a.C., sendo que seus novos habitantes, apesar de serem de várias origens – já que o exército assírio era formado por homens de vários outros povos dominados pelo império –, passaram a ser chamados de samaritanos e, desde aquela época, passaram a ser odiados pelos judeus (2 Reis 17:24-41).   
            O relato da parábola conta que um homem vinha de Jerusalém para Jericó, mas foi assaltado, espancado pelos malfeitores e estava quase morto, caído na estrada (provavelmente todo ensanguentado e desacordado). Pelo mesmo caminho, passaram um sacerdote, depois um levita e, por último, um samaritano, mas somente este deu socorro ao homem assaltado. Os dois primeiros passantes seriam, aparentemente, os mais “santos” e dignos de serem instrumentos da ação da graça de Deus na vida daquele homem, no entanto eles fizeram questão de passar longe, talvez porque tenham colocado seus próprios interesses como prioridade, já que a lei dizia que, se o sacerdote ou o levita tocassem em um morto – e o homem estava quase morto –, seriam considerados impuros e seriam impedidos temporariamente de exercer seus cargos religiosos (Levítico 21:1-2).
O terceiro passante certamente seria, observando apenas as aparências, o que teria menos motivos para prestar socorro ao homem assaltado, porque estava de viagem em terra estranha e, principalmente, porque sabia que aquele homem era um judeu – e os judeus odiavam os samaritanos. Mesmo diante disso, aquele samaritano decidiu parar e ajudar o homem caído, prestando-lhe ali mesmo os primeiros socorros, levando-o depois para uma hospedaria onde seria melhor cuidado e deixando uma quantia com o hospedeiro para que pudesse tomar todas as providências necessárias. Perceba que, contrariando as aparências, o samaritano não levou em conta seus próprios interesses, mas investiu seu tempo, seu cuidado e seu dinheiro no nobre empreendimento do amor ao próximo.
Então, depois de contar a parábola, Jesus retoma o diálogo com o doutor da lei e pergunta qual daqueles três havia sido o “próximo” do homem assaltado, e ele – mesmo se recusando a afirmar que fora o samaritano – responde que havia sido o que teve misericórdia do homem. Jesus, demolindo todas as barreiras do preconceito que os judeus tinham a respeito dos samaritanos, afirma ao doutor da lei que, se ele quer ter de fato a vida eterna, deve fazer a mesma coisa que aquele samaritano fez. Essa afirmação contundente evidencia um Cristo que não está preocupado com as aparências religiosas, mas que deseja manifestar a sua graça ao mundo por meio daqueles que verdadeiramente abram mão dos próprios interesses em favor do outro.