quarta-feira, 29 de junho de 2011

Um pouco da história da língua portuguesa falada no Brasil

Por Jurgen Souza

Se atualmente a língua portuguesa é a língua materna de quase toda a populaçãobrasileira, nosso país experimentava, nos primeiros séculos da colonização, uma situação de multilinguismo generalizado[1]. Em algumas regiões, predominava a língua geral de base tupi; em outros lugares, predominavam as línguas francas africanas; e havia ainda locais mais isolados (nos arredores dos engenhos ou nos quilombos), em que se falavam variedades crioulizadas do português. Diante dessa pluralidade cultural e linguística evidente nos tempos do Brasil Colônia, a consequência mais direta foi a alteração da língua trazida pelos portugueses, contando com a participação de indígenas e africanos na construção da modalidade da língua e da cultura representativas da – então insipiente – nação brasileira.
Durante o século XVI, o Brasil estava ocupado por muitos povos indígenas, falantes de tupi e de tupinambá, os quais foram rapidamente eliminados por guerras de extermínio, por epidemias de doenças europeias ou pela exploração dos portugueses. É importante ressaltar que, como a maioria dos colonos portugueses eram homens desacompanhados de suas famílias, houve uma tendência à miscigenação, mesmo porque a sociedade tupi-guarani aceitava naturalmente a inserção de estranhos como genros e cunhados. Surgem, então, os chamados mamelucos, que adquiriram inicialmente como língua materna o tupi – por conta do intenso contato com as mães –, mas depois se distanciaram social e culturalmente das sociedades indígenas, passando a manter contato constante com o português, o que gerou uma língua franca, chamada de língua geral, a qual pode ser classificada em dois tipos: língua geral paulista e língua geral amazônica.
A língua geral paulista tornou-se dominante na Capitania de São Vicente entre o século XVI e XVIII, de onde foi levada pelos bandeirantes – que eram mamelucos – para Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e províncias do Sul, enquanto a língua geral amazônica, falada por uma população mameluca desenvolvida através do contato dos índios tupinambá com os portugueses a partir 1615, foi a língua popular em toda a província do Amazonas e em grande parte da província do Pará até meados do século XIX, antes do ciclo econômico da borracha. Embora o português tenha sido sempre a língua oficial da colônia, seu estabelecimento como língua popular não aconteceu de maneira uniforme. Na costa leste e sueste, entre o Rio Grande do Norte e o Rio de Janeiro, o português foi, de fato a língua utilizada para comunicação desde o século XVI, mas na Capitania de São Vicente e, posteriormente, em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, a língua geral paulista foi o veículo de comunicação durante aproximadamente 200 anos, e no Maranhão, Para e Amazonas, a língua geral amazônica foi a língua popular durante quase 300 anos.
As línguas gerais de base indígenas serviram inicialmente como instrumento de comunicação adotado pelos portugueses para integrar a força de trabalho indígena na extração do pau-brasil e no cultivo de cana-de-açúcar, tabaco e algodão. Contudo, a resistência intrínseca do índio ao trabalho e as campanhas dos jesuítas contra a escravidão dos nativos fizeram com que o tráfico negreiro fornecesse a mão-de-obra necessária à implementação da cultura agroexportadora do açúcar, que se iniciou ainda no século XVI. A partir de então, a importação de escravos africanos para o Brasil cresceu bastante, principalmente em Pernambuco e na Bahia, permitindo o avanço da língua portuguesa em território brasileiro, mesmo que, em alguns agrupamentos mais etnicamente homogêneos, os escravos pudessem fazer uso de uma língua franca de base africana que servisse para a comunicação entre eles.
            De acordo com a pesquisadora Yeda Pessoa de Castro, as muitas línguas africanas trazidas ao Brasil por intermédio dos escravos que vieram para cá eram originárias de duas partes da África: a África Ocidental e a África Banto, territórios da família linguística Níger-Congo. Os escravos vindos da África Ocidental – do Senegal à Nigéria – trouxeram as línguas do subgrupo Kwa, tais como iorubá, ibô, ewe, fon, nupe ou tapa, twi-fante, axante. Por outro lado, os escravos vindos da África Banto – da linha do equador ao cone sul-africano – trouxeram as línguas do subgrupo Banto, tais como quimbundo, quicongo e umbundo. Acredita-se que os africanos de mesma etnia não tenham sido levados para o território brasileiro numa mesma época, com o intuito de impedir a comunicação entre eles e, é claro, o surgimento de revoltas e rebeliões. Todavia, segundo a pesquisadora Margarida Petter, muitos escravos de etnias e línguas diferentes eram forçados a conviver juntos por um determinado tempo antes mesmo de embarcarem para o Brasil, possibilitando cogitar a hipótese de que as línguas francas africanas que teriam sido utilizadas em território brasileiro já haviam sido delineadas ainda em terras africanas.
Já em território brasileiro, os africanos foram espalhados pelo interior do país e quase não tiveram contato com a cultura europeia e, consequentemente, com a variedade padrão da língua portuguesa, restringindo-se à convivência com colonos portugueses pobres e pouco escolarizados, com os quais adquiriram o português como segunda língua. Segundo o pesquisador Dante Lucchesi, a chegada do grande contingente de escravos africanos por meio do tráfico negreiro acabou por colocar os negros que aqui chegaram e seus descendentes numa situação paradoxal. Eles foram, por um lado, vítimas de uma violenta repressão cultural e linguística que não permitiu a conservação das muitas línguas africanas que chegaram aqui e, por outro, os principais protagonistas no processo de difusão da língua portuguesa no Brasil, contribuindo para que o contato linguístico dos muitos falares africanos com a língua portuguesa trazida da Europa gerasse as características mais notáveis da fala popular brasileira.
A história sociolinguística do Brasil, nessa época, aponta para um cenário bipolarizado, no qual as cidades, pouco populosas e geralmente situadas no litoral, eram reduto exclusivo de uma reduzida elite colonial, que procurava aproximar-se e manter-se fiel ao padrão linguístico lusitano, enquanto a maior parte da população colonial – espalhada pelo interior do país – quase não tinha contato com a cultura europeia e, consequentemente, com a variedade padrão da língua portuguesa, restringindo-se à convivência com colonos portugueses pobres e pouco escolarizados, com os quais adquiriram precariamente o português como segunda língua. Apesar de todo esse processo ter origem nos ambientes rurais – para onde a maioria dos escravos foi levada –, os resultados desse contato linguístico acabaram atingindo também os ambientes citadinos.
Depois da abolição da escravatura, boa parte dos africanos e seus descendentes, os quais já eram quase 70% dos três milhões e trezentos mil habitantes do Brasil no início do século XIX, migrou para as cidades, por conta do processo de industrialização e urbanização que atraía mão-de-obra barata, e acabou inserida nos diversos setores da atividade produtiva, mesmo que se concentrasse nos estratos menos elevados da sociedade, servindo, assim, de transmissor desse português tipicamente nosso. Dessa forma, certas mudanças ocorridas na fala popular penetraram na fala das camadas médias e altas, eliminando as marcas distintivas mais características do contato linguístico ocorrido nos primeiros séculos de colonização e propiciando o surgimento de alguns traços típicos do chamado português popular brasileiro.



[1] Termo cunhado pela renomada pesquisadora Rosa Virgínia Mattos e Silva.



terça-feira, 28 de junho de 2011

A valorização da cultura local na proclamação do evangelho

Por Jurgen Souza

Qualquer cristão que compreendeu e experimentou verdadeiramente o poder transformador do evangelho acredita, de fato, que essa proposta de vida deve ser compartilhada com outros povos mundo afora. Algumas pessoas, porém, são impactadas de tal forma por essa mensagem que se entregam, elas próprias, à incumbência de realizar a missão de proclamar o evangelho em outros lugares. Todavia, o processo de entrega a essa missão envolve questões que nem sempre são consideradas no momento em que se toma uma decisão como essa. Nessa perspectiva, aspectos como a valorização da cultura local e o necessário envolvimento do missionário com a comunidade a quem se dirige a mensagem do evangelho carecem ser levados em consideração por alguém que deseja se entregar à obra missionária.
Quando alguém se prepõe a compartilhar a mensagem do evangelho para indivíduos de uma cultura diferente da sua, o primeiro cuidado necessário é realizar um estudo prévio dos aspectos culturais que estarão envolvidos nessa tarefa, levando em conta o fato de que nenhuma cultura é superior à outra. Um dos problemas mais frequentes nesse tipo de situação reside justamente no fato de que o próprio conceito de missão que figura no ideário coletivo dos missionários considera, na maioria dos casos, a cultura do evangelizador superior à cultura do povo a quem se pretende evangelizar, conduzindo, consequentemente, a uma prática missionária que costuma hostilizar a cultura local, associando-a ao demônio. Não é à toa, portanto, que muitos países oferecem resistência à pregação do evangelho, inclusive proibindo a entrada e a permanência de missionários em seu território.
O respeito ao outro e à sua cultura – ainda que haja grandes diferenças em comparação com a cultura da qual o missionário é oriundo – é imprescindível para a inserção pacífica e transformadora da mensagem cristã dentro de uma sociedade que comunga de outra realidade religiosa. Por isso, um cuidado necessário a qualquer empreitada missionária transcultural é a busca por uma ação missionária que proclame o evangelho sem levar os indivíduos que são alvo de tal proclamação a perderem sua identidade cultural, uma vez que as boas novas do evangelho não são propriedade de nenhuma cultura nem podem ter cultura alguma como modelo. A verdadeira mensagem do evangelho transcende as convenções sócio-culturais para ir ao encontro de uma humanidade sedenta de homens e mulheres que vivenciem cotidianamente o amor de Deus, no sentido mais amplo que esse termo pode expressar.
No momento em que esses cuidados básicos são negligenciados, o missionário coloca em risco a missão que se propôs desempenhar. Além da já mencionada resistência à pregação desse evangelho desrespeitoso, os poucos frutos da ação missionária não estarão alicerçados na essência da mensagem cristã e sim na estrutura sócio-cultural que lhes foi imposta, não sendo, portanto, frutos duradouros. Vários indivíduos que acataram a ideia de que deveriam renegar sua cultura – classificada pelos missionários como demoníaca – acabam retornando às suas origens e abandonando os ensinamentos acerca do evangelho de Cristo. Na raiz do fracasso de muitas missões, então, está a não-valorização da cultura e do modo de vida local por parte de quem desenvolve a missão, gerando, assim, a falta de envolvimento do missionário com a comunidade para a qual a mensagem do cristianismo se dirige. Esse distanciamento do missionário com relação à vida cotidiana do povo que se pretende evangelizar acaba se traduzindo, na prática, em uma indiferença à sua pregação. Quando a missão não se identifica com a realidade sócio-cultural da população a quem ela se destina e não faz diferença na vida real das pessoas – auxiliando-as a enfrentar e a resolver os dilemas do dia a dia –, seu poder agregador é minimizado e sua influência transformadora é nula.
A missão de pregar a mensagem cristã não pode estar dissociada do envolvimento com o outro. A proclamação de uma nova vida, anunciada na pregação do próprio Jesus Cristo, estava centrada na sua identificação com aqueles para os quais sua palavra se dirigia, envolvendo-se com eles em suas mazelas e ajudando-os a saná-las. O sociólogo Norbert Elias conceitua envolvimento como um estado da mente no qual somos levados a nos aproximar do outro e a nos identificar com a sua condição social; e o distanciamento, ao contrário, é um estado da mente que nos conduz ao individualismo e à neutralização do outro, enxergando-o apenas como parte do cenário. Partindo dessa premissa, qualquer ação missionária séria e compromissada, de fato, com os ensinamentos de Cristo deve considerar o envolvimento com as pessoas que são alvo da proclamação do evangelho como a base da missão.
É impossível haver envolvimento quando o missionário considera a forma de o outro ver e viver a vida como demoníaca, preferindo afastar-se daqueles a quem julga carentes da libertação que só o seu Deus pode realizar. Faz-se necessário lembrar, porém, que o processo genuíno de libertação deve envolver igualmente quem proclama a mensagem do Cristo e quem a recebe, e acontece, de fato, apenas quando missionário e comunidade compartilham tal mensagem na prática do cotidiano, afinal, como afirma Paulo Freire – educador e crítico da educação brasileira, de cujas   ideias  surgiu  a  base  conceitual   da   chamada teologia da libertação –, “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. 

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Língua, poder e diversidade: a polêmica do livro didático do MEC

Por Jurgen Souza

O mundo pós-moderno tem vivenciado, nas últimas décadas, importantes tentativas de abolir os comportamentos sociais preconceituosos criados pela elite dominante e há muito tempo arraigados em nossa sociedade. Já é possível, por exemplo, perceber um relativo progresso – ainda que com dificuldades – no que diz respeito à quebra de preconceito contra as mulheres, contra os negros e contra os homossexuais. Contudo, o preconceito linguístico ainda continua latente em uma sociedade que usa questões relacionadas à língua como um mero pretexto para a prática de segregação social. Um exemplo claro dessa postura excludente foi o patético reboliço da mídia nacional contra o livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor, distribuído pelo MEC para a educação de jovens e adultos.
A autora do livro, professora Heloísa Ramos, destaca já na introdução que “falar é diferente de escrever” e que, ao contrário do que ocorre na fala, “a língua escrita exige um aprendizado formal” (p. 11), chamando a atenção para o fato de que “um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana” (p. 12). O livro, então, exemplifica essa situação dizendo que, no dia a dia, o aluno pode até falar “os livro”, sem aplicar a regra de concordância nominal, mas que ele deveria ficar “atento”, uma vez que, “dependendo da situação”, poderia “ser vítima de preconceito linguístico” (p. 15). O texto, redigido de maneira muito clara e didática, conclui alertando que “o falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião” (p. 15).
No que tange ao ensino de língua materna na atualidade, um dos principais objetivos é informar o aluno a respeito da pluralidade linguística brasileira, desenvolvendo-lhe a capacidade de perceber a existência de outras variedades linguísticas que não a variedade padrão e de admiti-las como legítimas em seu universo cultural e, portanto, dignas de respeito. Não se trata, nesse caso, de uma campanha contra o ensino da variedade padrão preconizada pela gramática normativa, até porque são notórias as relações de poder que estão envolvidas no uso da língua, levando em conta que o domínio de tal variedade exigido em algumas situações do cotidiano pode ser um instrumento de ascensão ou de exclusão social. Não se deve esquecer, no entanto, que a variedade padrão é apenas uma das variedades da língua, sendo imprescindível que o estudante tenha ciência da existência de outras variedades linguísticas, desfazendo-se do preconceito que muitas vezes lhe incutiram a respeito do seu próprio modo de falar.
Alardeando equivocadamente a ideia de que o livro ensinava a falar “errado”, a imprensa brasileira provou apenas um profundo desconhecimento do livro didático que foi alvo das críticas, bem como das muitas pesquisas acadêmicas acerca da língua portuguesa falada no Brasil e dos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, os quais, aliás, estão em pleno acordo com as recomendações de inúmeros estudiosos do ensino de língua materna. Ao invés de buscar conhecer o objeto de sua crítica, como se espera de um trabalho jornalístico sério, quase todas as reportagens se limitavam a pinçar a dedo uma ou duas frases do livro, sem sequer levar em consideração o contexto em que estavam inseridas. Tal comportamento da imprensa brasileira com relação ao livro didático do MEC só comprova que, para a elite dominante, detentora do poder midiático no Brasil, o reconhecimento da diversidade linguística ainda é visto como uma ameaça.
Não é de se estranhar que isso ocorra, pois a história dos primeiros séculos do nosso país aponta para essa flagrante segregação social externalizada por meio do uso da língua. Desde o século XVI, a realidade linguística brasileira era bipolarizada, segundo afirma Dante Lucchesi, um dos maiores pesquisadores da língua portuguesa falada no Brasil. As cidades, pouco populosas e geralmente situadas no litoral, não influenciavam as distantes povoações interioranas e eram reduto exclusivo de uma reduzida elite colonial, a qual, como era de se esperar, procurou aproximar-se e manter-se fiel ao padrão linguístico lusitano, submetendo-se ao cânone português até o início do século XX. A maior parte da população colonial – formada principalmente por índios nativos e negros escravos, e espalhada pelo interior do país – quase não tinha contato com a cultura europeia e, consequentemente, com a variedade padrão da língua portuguesa, restringindo-se à convivência com colonos portugueses pobres e pouco escolarizados, com os quais adquiriram, sem instrutores ou escolas, o português como segunda língua. Mais tarde, esse português precariamente adquirido chegou também, por conta do êxodo rural, à periferia dos grandes centros urbanos, constituindo o chamado português popular brasileiro.
Como a língua tem sido historicamente um poderoso instrumento de dominação e de construção da hegemonia do segmento dominante, esse levante de uma mídia elitista reacionária contra o ensino da diversidade linguística nas escolas enseja apenas legitimar a manutenção do status quo de uma pequena parcela da população, discriminando as formas de expressão das classes populares ou, mais precisamente, os usuários dessas variedades linguísticas consideradas inferiores. Longe de ser prejudicial, o reconhecimento da diversidade linguística é essencial a uma escola democrática e inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno, sem menosprezar sua bagagem cultural. Prejudicial mesmo, por ser um ato inaceitável de violência simbólica e de segregação social, é a imposição de uma única forma de usar a língua.

domingo, 26 de junho de 2011

O papel da religião na luta pela cidadania

Por Jurgen Souza

Quando o termo “cidadania” surgiu ainda na Grécia Antiga, sua concepção não abrangia todos os moradores da polis, uma vez que, nessa época, somente era considerado cidadão o homem-livre e nascido na terra, o qual gozava da isonomia (direito de igualdade perante as leis) e da isegoria (direito de opinar sobre as questões administrativas da polis), mas tal condição era restrita apenas aos que tinham mais posses. Todavia, ainda que se restringisse a uma pequena parcela da população grega, o direito à cidadania era algo inovador para aquele momento, visto que, em antigos impérios – como o persa, o egípcio, o babilônico, o hindu e o chinês –, vigorava o poder absolutista do déspota, que, legitimado pelo discurso religioso, oprimia a população. Somente no final do império greco-romano, a partir das reivindicações dos camponeses pobres, a cidadania se estendeu a qualquer homem-livre que nascesse naquela terra, independente de sua situação econômica.
Apesar de não fazer uso do termo “cidadania”, a literatura profética bíblica tem vestígios indeléveis da existência, antes mesmo das supostas origens gregas, de uma discussão acerca de tal assunto, evidenciada quando se estudam os discursos proféticos a respeito do reinado israelita de Jeroboão II (787 – 747 a.C.), destacando-se as contribuições dos profetas Amós e Oséias. Último rei da Dinastia de Jeú, Jeroboão II inverteu um sucessivo quadro de crises político-econômicas no Reino de Israel, pois os reis que o precederam haviam sido obrigados a pagar tributos e até a entregar parte de seu território a outros reinos. Ele, então, retomou as terras perdidas e deteve o controle das principais rotas comerciais da época, além de ter sido favorecido pelas boas relações com o Reino de Judá e pela aparente estagnação do Império Assírio. Esse período de grande riqueza foi marcado, porém, por um terrível processo de desigualdade social, pois o sistema administrativo concentrava a renda nas mãos de poucos e empobrecia a maioria da população. Contribuindo para o aumento dessa desigualdade, a religião servia de centro arrecadador do reinado, oprimindo ainda mais o povo.
Contrários a essa opressão política, social e econômica a que o povo fora submetido, insurgiram-se Amós e Oséias, representantes do profetismo naquela época, os quais instauraram um debate que, bem entendido, via as questões religiosas como práticas sociais de poder e subjugação. Amós, retratando o primeiro momento do reinado de Jeroboão II, fez uma crítica ferrenha ao fato de o espaço religioso estar sendo utilizado como cenário de manipulação e subjugação do povo, que, já tão explorado pelas políticas adotadas no reino, era incitado pelo sacerdote a contribuir ainda mais, pois o templo, nessa época, estava a serviço do Estado, e o sacerdote era funcionário do rei. Além disso, o profeta fez críticas duríssimas diretas à estrutura governamental, denunciando o incentivo aos grandes latifúndios, a imposição de pesados tributos aos pequenos agricultores, o regime de trabalho forçado da corvéia e o suborno ao direito dos pobres por parte dos mais ricos.
Oséias, por sua vez, retratou os momentos finais do reinado de Jeroboão II, denunciando principalmente a inserção de elementos do culto a Baal na religião israelita, que legitimavam a opressão e a exploração do povo. Alguns historiadores afirmam que os rituais de fecundidade e fertilidade da terra, que passaram a fazer parte da religião popular, eram uma forma de aumentar a taxa de natalidade entre os mais pobres e, consequentemente, a mão-de-obra na corvéia, gerando mais riqueza para os latifundiários. Outros estudiosos, no entanto, viam tal questão religiosa sob a ótica política, pois a aceitação dessa idolatria poderia levar Israel a procurar a salvação não em Deus, mas nas alianças com o Egito e a Assíria – grandes potências militares do momento. Não era propriamente à religião, portanto, que se dirigia a dura crítica do profeta, mas à forma dissimulada de opressão e cerceamento de direitos dos cidadãos israelitas a que a religião se servia, e ao próprio sistema monárquico, que é visto como fruto da ira de Deus.
Não menos desigual e opressora, a sociedade contemporânea ainda encontra respaldo na religião para cercear o direito à cidadania para muitas pessoas. Uma religião que fecha os olhos para a condição de opressão social a que os menos abastados estão submetidos aponta para uma forma de relação entre o sagrado e o humano que responde apenas aos anseios dos estratos sociais mais elevados. Não se pode negar também que a escolha da forma de vivenciar a religiosidade leva em consideração outros interesses, podendo a religião, como aconteceu em muitos momentos da história, estar a serviço do poder político vigente, sendo usada como instrumento de manutenção da ordem social. É facilmente perceptível, desde que não fechemos os olhos à realidade, que, apesar de vivermos num país em que a Constituição Federal estabelece a cidadania como princípio fundamental, reconhecendo que todos os brasileiros têm direito a ela, aqueles que ocupam uma posição subalterna nas estruturas sociais parecem não ter assegurados os seus direitos de cidadãos, pois não lhe são dadas as condições necessárias para que isso ocorra.
É possível ser verdadeiramente um cidadão com um sistema de justiça moroso para os marginalizados e eficaz para os detentores do poder? Podemos exercer, de fato, o direito à cidadania sem ter acesso à educação e à saúde pública de qualidade? Alguém pode se considerar cidadão quando sequer tem o que comer? Perguntas como essas nos emudecem porque as respostas que temos a dar são vergonhosas. Percorremos, ao longo desse texto, um caminho reflexivo que partiu das origens históricas, relembrando e aprendendo com as histórias bíblicas, para chegarmos às implicações que o debate acerca da cidadania pode abarcar. Essa trajetória, longe de ser apenas um mero retorno ao passado, anseia por nos conduzir de volta ao debate contemporâneo acerca da cidadania, sem que, no entanto, possamos nos esquecer das tênues relações que existiram e existem entre as práticas religiosas e os processos legitimadores de poder. Espera-se, assim, que a leitura deste texto venha, ao menos, possibilitar algumas reflexões necessárias das quais não poderemos mais fugir, pois o direito à cidadania e as políticas que a implementam passam, antes mesmo de passar pelo Congresso Nacional, pela sociedade civil organizada e atuante, da qual as instituições religiosas precisam fazer parte. Não podemos deixar de ouvir os gritos proféticos que ainda hoje ecoam, ávidos por resposta.

sábado, 25 de junho de 2011

Mulher e teologia: reflexões acerca do fazer teológico


Por Jurgen Souza & Nilza Farias

Ao longo da história da humanidade, foi construída uma imagem da mulher como um ser de segunda categoria e, portanto, inferior ao homem. Desde as sociedades agrícolas do período neolítico até a sociedade contemporânea, a imagem atribuída à mulher foi a de reprodutora da espécie, ainda que, na prática, ela sempre participasse das atividades produtivas. Dessa forma, a mulher foi sendo vista como um ser mais frágil e incapaz de assumir papéis de liderança, o que restringiu sua função ao mundo doméstico e a tornou submissa ao homem. Ao contrário do que se possa pensar, a evolução das sociedades não aboliu o pensamento patriarcal e, mesmo com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a questão de gênero ainda fica evidente com as péssimas condições a que ela está exposta no ambiente de trabalho e com uma remuneração inferior à do homem que desempenha a mesma função. Discutir a mulher na sociedade de hoje, portanto, é compreender a necessidade de desconstruir os estereótipos criados em torno dela desde os primórdios da humanidade.
No âmbito teológico, essa necessária desconstrução deve conduzir ao questionamento das posturas dogmáticas e excludentes em relação ao fazer teológico, as quais durante muito tempo negaram à mulher o papel de sujeito histórico e a relegaram a segundo plano. Fazer teologia sempre esteve associado ao universo masculino, mas essa atividade múltipla e variada também inclui as mulheres, no sentido de que pode ser expressa através da vivência, da transmissão oral e na partilha simples da vida, não se limitando apenas aos cursos de teologia para, muito além disso, alcançar também as diversas comunidades de fé. É imprescindível, portanto, a formação de uma consciência histórica da mulher, levantando a bandeira da luta libertária que se dá por meio da ativa participação feminina em diferentes frentes – inclusive a teológica – das quais a mulher estava ausente. Esse pensamento conduzirá, então, a mulher a se enxergar como sujeito da história, despertando a consciência de seu importante papel social e o desejo de desempenhá-lo cada vez mais e melhor.
A partir da última década do século XX, a teologia de cunho feminista passou a discutir a possibilidade de uma leitura bíblica que englobasse as lutas feministas por libertação e bem-estar. Se a bíblia foi usada diversas vezes para difundir valores e visões patriarcais, o desafio agora era criar um sentido bíblico feminista, preocupando-se em contextualizar a leitura bíblica na vida das mulheres, as quais estão inseridas em estruturas sociais de dominação. Imerso no contexto da mulher latino-americana, brasileira e nordestina, o fazer teológico feminino acaba por enxergar a vida como o lugar da experiência simultânea da opressão e da libertação, incluindo, de maneira mais incisiva, o outro e as suas mazelas na ação de teologar, pois a luta por um mundo mais igualitário e mais humano, onde a vida triunfe de fato sobre as forças da morte, precisa fazer parte do pensamento teológico. É necessário, porém, ultrapassar o discurso teológico acadêmico e chegar, através das muitas comunidades de fé, aos cristãos de modo geral, valorizando e apoiando os ministérios dirigidos por mulheres, os quais, embora nem sempre sejam oficialmente reconhecidos por algumas denominações religiosas, são muito bem aceitos pelos membros comunidade. Esse novo modo de fazer teologia certamente coloca em xeque as formulações teológicas marcadamente machistas, que legitimam o poder masculino de utilizar o sagrado nas decisões tomadas nas igrejas, mas, como não é segredo para ninguém, desafiar o poder hegemônico masculino não é uma tarefa das mais fáceis.
Uma leitura feminina da bíblia deve, antes de mais nada, apresentar uma mudança na forma como vemos e experienciamos Deus, abrindo espaço para que se fale e se valorize a presença das mulheres nas Escrituras e nas igrejas. No que tange ao pecado original, por exemplo, uma leitura crítica dos textos bíblicos a partir da ótica feminina conduziria ao entendimento de que, ao contrário do que ocorre na leitura tradicional, a mulher não foi a única responsável pela introdução do pecado no mundo, realçando que homem e mulher compartilham da mesma condição de pecadores. Nessa perspectiva, então, ambos são também igualmente responsáveis pela transformação que fará a humanidade caminhar em direção a si mesma, despertando-lhe os anseios mais profundos de amor e de justiça na construção de um mundo diferente, onde a dignidade de cada um possa manifestar-se de fato. Tal forma de ler as Escrituras, centrada fundamentalmente na relação igualitária, acaba nos conduzindo a uma história real, construída igualmente pela ação de homens e mulheres de diferentes tempos, etnias e nações, e que por vezes foi ocultada por uma sociedade patriarcal que não nos permitiu conhecer a importância da mulher.
Contudo, não se pode fazer, de fato, uma leitura bíblica do ponto de vista feminista sem conduzir leitores e leitoras a um debate público a respeito do texto bíblico, fazendo da igreja um espaço democrático para esse repensar das Escrituras. Os significados da leitura bíblica precisam ser constantemente questionados, reconsiderados e reformulados, possibilitando que sejam enxergados os valores de dominação existentes na leitura tradicional e, ao mesmo tempo, difundir valores de libertação que possam conduzir a mulher a uma leitura bíblica feminista e emancipatória. Esse novo olhar sobre a mulher no mundo e, em especial, no universo do fazer teológico reivindica necessariamente um maior respeito à dignidade feminina e à sua participação na construção de uma nova sociedade que parece se projetar para os tempos vindouros.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

A participação da igreja local no desenvolvimento de uma cultura de paz

Por Jurgen Souza

O debate cada vez mais atual sobre a necessidade de se estabelecer uma cultura de paz que avance de contextos específicos para contextos gerais aponta, inevitavelmente, para a cruel realidade da violência existente em nosso país. O Brasil exuberante, rico em paisagens naturais e em diversidade cultural, também figura no cenário internacional como um país tomado pela violência. O imaginário coletivo, no entanto, parece associar, quase que imediatamente, as situações de violência a Rio de Janeiro e São Paulo, por conta da sua super-exposição na mídia nacional, mas tal realidade atinge também as pequenas cidades e outros centros urbanos país afora. Um exemplo disso é a cidade de Salvador, que teve o maior crescimento da taxa de violência entre as capitais do país, registrando um aumento de 79% nos homicídios entre os anos de 2006 e 2008, de acordo com a própria Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia.
Discutir a respeito da formação de uma cultura de paz é, antes de tudo, refletir sobre a violência, buscando entender suas causas e, nesse intuito, alguns estudos demonstraram que, apesar de não ser a única causa da violência, a desigualdade social certamente serve de impulso para ela, sendo os problemas sociais decorrentes da organização capitalista da sociedade os maiores causadores do aumento da violência nos últimos anos. A Unesco, em 2000, lançou um manifesto por uma cultura da paz, no qual se veiculam ideias consensuais que apontam para a necessidade da construção de uma ambiência que possa permitir aos homens uma vida pacífica, incluindo necessariamente a participação da igreja na propagação dos valores essenciais à consolidação desse ethos de paz, engajando-se na tarefa de conduzir os indivíduos a desejarem a formação desse ambiente e a se comprometerem com essa causa.
Como propõe a Campanha Global de Educação para a Paz, lançada em Haia, em 1999, o estabelecimento de uma cultura de paz deve fazer parte do cotidiano eclesiástico, figurando entre os temas debatidos e as ações desenvolvidas pelas igrejas. A proposta afirma que, nesse sentido, seria papel da igreja criar referenciais não-violentos, fortalecer conexões comunitárias, formar consenso para a paz, capacitar pessoas para a mudança pela paz, promover justiça e o fim das desigualdades sociais, oportunizar vivências plurais para além dos preconceitos e estereótipos, instrumentalizar para a resolução não-violenta de conflitos, ajudar a lidar com a agressividade, e desenvolver uma crítica à cultura de violência.
Na contramão de tudo isso, porém, as igrejas cristãs protestantes parecem estar, em sua maioria, fechadas em si mesmas, disseminando a crença de que a violência teria causas essencialmente espirituais. Mais do que um posicionamento religioso, essa atitude ensimesmada produzida pelo protestantismo seria, numa análise weberiana, uma clara postura de apoio aos comportamentos que norteiam a sociedade capitalista, formadora de desigualdades. Os discursos e as práticas eclesiásticas adotadas por muitas dessas igrejas reproduzem, na verdade, o individualismo exacerbado para o qual o ideal capitalista conduz, na tentativa de evitar a instauração da solidariedade entre comunidades atingidas pela desigualdade social e, consequentemente, pela violência. Fazendo-se uma retrospectiva ao período de surgimento do cristianismo, é possível perceber uma clara diferença entre essa postura isolacionista das igrejas cristãs protestantes da atualidade e a postura adotada pelas igrejas cristãs do primeiro século, ou pelo próprio ministério de Cristo ou, até mesmo, pelas sinagogas judaicas do período de Jesus.
As chamadas igrejas primitivas buscaram estabelecer uma comunidade que se importava com o próximo, que repartia suas posses a fim de suprir as necessidades uns dos outros, dedicando-se a cuidar dos necessitados de modo justo e equânime e desenvolvendo o pensamento de que os que têm em abundância deveriam compartilhar com os que nada têm, para que todos pudessem viver de maneira digna e em paz uns para com os outros.  O ministério de Cristo, antes disso, já mostrava o caminho do envolvimento com o outro e com suas mazelas, pois a proclamação do evangelho acontece, de fato, justamente nessa opção pelo envolvimento com as causas dos menos favorecidos. Antes mesmo de Jesus, as sinagogas judaicas, por mais excludente que pudesse ser aquela sociedade, também não estavam interessadas apenas na realização do culto, servindo – numa atitude de envolvimento com a comunidade – como escola durante a semana, ajudando na educação de jovens e crianças.
Para que haja, de fato, uma cultura de paz, o conceito de igreja precisa mudar. Uma igreja comprometida com a paz pensa o espaço eclesial como parte da comunidade em que ela está inserida e posiciona-se como uma instituição da qual toda a comunidade faz parte, mesmo aqueles que não são cristãos. A participação de todos no processo eclesial ocorre no envolvimento com as ações pedagógicas da cultura da paz, tornando a igreja uma instituição aglutinadora e promotora do desenvolvimento dessa comunidade. Não se trata aqui de uma visão ingênua, como se a igreja, por si mesma, tivesse o poder de resolver o problema da violência, mas o que se deseja é que ela faça parte desse processo, uma vez que, se a violência é causada por múltipos fatores, sua solução exige ações integradas de múltiplos agentes dentro da comunidade.
Uma igreja que deseja participar ativamente do desenvolvimento de uma cultura de paz na comunidade da qual faz parte precisa inverter as prioridades. Urge repensar a forma como a igreja cristã tem proclamado o evangelho de Jesus Cristo em meio a um povo tão sofrido, tão alijado de seus direitos mais essenciais e que, por vezes, encontra na criminalidade a única forma de sobrevivência nesse mundo cruel que nós ajudamos a criar. Assim, o principal objetivo da proclamação das boas novas deve ser revelar Deus à humanidade, sabendo que tal revelação só se dará, de fato, no envolvimento com o outro e com os dilemas que o cercam. Sem isso, proclamar o evangelho será algo inútil ao reino de Deus e servirá – como infelizmente tem servido na atualidade – apenas como discurso legitimador da opressão e da exploração humana, do qual se apropria uma meia dúzia de gente interesseira e gananciosa, no intuito de se auto-promover e enriquecer ilicitamente.
A participação da igreja local na construção de uma cultura de paz é imprescindível, mas a igreja cristã, em especial o segmento dito protestante, precisa entender melhor sua verdadeira missão, engajando-se nessa causa que, certamente, é parte indissociável da causa do próprio Cristo. Não há sentido algum em a igreja fazer qualquer coisa que não seja orientada por e para a transformação real das vidas que pretende atingir com o evangelho. Em última instância, a caminhada de envolvimento com esse processo de mudança da realidade ao nosso redor acaba por nos revelar mais sobre Deus e permite que Ele estabeleça conosco uma relação que nos conduz a uma vida abundante, verdadeiramente plena, dignamente humana, como ele mesmo desejou em nossa gênese. 

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O fundamentalismo do livro

Por Jurgen Souza

O fundamentalismo religioso pressupõe, antes de tudo, uma errônea supremacia de determinada cultura sobre outras, reconhecendo como verdades absolutas apenas as convicções ideológicas estabelecidas por tal cultura considerada superior, apresentando-se como um preconceito por parte daqueles que se colocam como portadores de uma única verdade, sem levar em conta a existência de outros pontos de vista. Como toda religião tem sua lógica interna, sem a qual é impossível compreender verdadeiramente o fenômeno religioso, qualquer pessoa religiosa utiliza, em geral, seu próprio referencial de fé para posicionar-se em relação à experiência de fé alheia. O problema é que, ainda que se pretenda estabelecer uma relação de neutralidade com o objeto da observação, essa auto-referencialidade acaba gerando uma tensão entre a visão de mundo do indivíduo religioso e uma outra visão de mundo diferente da sua, proporcionando, por vezes, o surgimento de um latente preconceito a respeito de outras religiões.
Como se não bastasse essa dificuldade natural existente na compreensão do indivíduo religioso acerca das diversas formas de vivenciar a relação com o sagrado, algumas religiões, na tentativa de salvar a si mesmas de toda e qualquer influência externa, colocaram o livro sagrado como verdade incontestável e infalível, configurando o que se chamou de fundamentalismo do livro. Judaísmo, islamismo e cristianismo, por serem religiões que se baseiam em um livro considerado sagrado – a torá, o alcorão e a bíblia, respectivamente – têm vários exemplos desse tipo de fundamentalismo religioso, mas o presente texto pretende se restringir a uma breve reflexão sobre as posturas fundamentalistas de algumas denominações cristãs: os testemunhas de Jeová, os mórmons, a igreja do reverendo Moon e as igrejas eletrônicas espalhadas pelo mundo.   
Os testemunhas de Jeová buscam uma vivência religiosa livre das sugestões exteriores, considerando o texto bíblico, em especial a tradução feita do inglês pela Sociedade da Torre Vigilante, como a única e inquestionável verdade, para a qual não se tem outra interpretação senão a que o próprio texto apresenta. Com base nesse pensamento fundamentalista, somente se pode chegar ao conhecimento da história e do que ainda está por vir através de uma leitura atenta e literal da bíblia, segundo a qual os maus serão aniquilados e os testemunhas sinceros povoarão a terra regenerada e viverão em paz. O pensamento religioso dos testemunhas de Jeová é legitimado por uma via de mão-dupla, onde o texto bíblico remete à autoridade do líder religioso e este remete ao texto bíblico como autoridade fornecida pela tradição, reforçando o caráter inquestionável dos seus fundamentos religiosos e refutando os que deles divergem.
Os mórmons também podem ser citados como um exemplo do fundamentalismo do livro, uma vez que os membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias procuraram retomar a tradição bíblica por meio da história original dos antigos povos da América – aos quais Jesus teria trazido seus ensinamentos. Para os mórmons, a verdadeira interpretação da bíblia se encontra no Livro do Mórmon, enquanto o livro Doutrina e Alianças procura comprovar a história do texto bíblico e o livro A Pérola de Grande Valor anuncia a proximidade futura de realização das profecias milenaristas contidas no texto bíblico. O pensamento religioso dos mórmons, a exemplo dos testemenhas de Jeová, também se manifesta na dupla vertente autoridade do líder religioso e textos sagrados, inviabilizando a possibilidade de outras interpretações.
A igreja do reverendo Moon também procura legitimar seu pensamento através da relação entre a autoridade do líder religioso e o livro sagrado, baseando-se unicamente no livro Os Princípios Divinos, escrito pelo coreano Sun Myung Moon. Segundo a leitura bíblica proposta por Moon, o pecado de Adão e Eva gerou a ruptura da aliança do homem com Deus e uma nova aliança com Satanás, levando os patriarcas e os profetas a tentarem, sem sucesso, pagar essa dívida espiritual, mas nem mesmo Jesus teria conseguido pagá-la por inteiro, sendo necessária a vinda de um novo messias que seja capaz de trazer de volta os homens para Deus por meio da família. Para os seguidores do reverendo Moon, ele próprio acabou se tornando o protótipo desse novo messias, o que acabou conduzindo a uma verdadeira idolatria.   
Por fim, um caso interessante desse fundamentalismo do livro é o das igrejas eletrônicas que se espalharam mundo afora. Apesar de usarem o texto bíblico como fonte de verdade, o pensamento religioso de tais igrejas é legitimado quase que exclusivamente pela autoridade do líder religioso e de suas interpretações do texto bíblico. Nesse caso, então, mesmo partindo do texto bíblico, o fundamentalismo difundido por essas igrejas encontra amparo principalmente nos conceitos morais apregoados pelos muitos pregadores da mídia, os quais reivindicam para si o título de ungidos de Deus e acabam sendo idolatrados pelos seguidores virtuais, que não hesitam em depositar quaisquer quantias para manter o ministério daqueles que se consideram “os verdadeiros homens de Deus”.