quinta-feira, 23 de junho de 2011

O fundamentalismo do livro

Por Jurgen Souza

O fundamentalismo religioso pressupõe, antes de tudo, uma errônea supremacia de determinada cultura sobre outras, reconhecendo como verdades absolutas apenas as convicções ideológicas estabelecidas por tal cultura considerada superior, apresentando-se como um preconceito por parte daqueles que se colocam como portadores de uma única verdade, sem levar em conta a existência de outros pontos de vista. Como toda religião tem sua lógica interna, sem a qual é impossível compreender verdadeiramente o fenômeno religioso, qualquer pessoa religiosa utiliza, em geral, seu próprio referencial de fé para posicionar-se em relação à experiência de fé alheia. O problema é que, ainda que se pretenda estabelecer uma relação de neutralidade com o objeto da observação, essa auto-referencialidade acaba gerando uma tensão entre a visão de mundo do indivíduo religioso e uma outra visão de mundo diferente da sua, proporcionando, por vezes, o surgimento de um latente preconceito a respeito de outras religiões.
Como se não bastasse essa dificuldade natural existente na compreensão do indivíduo religioso acerca das diversas formas de vivenciar a relação com o sagrado, algumas religiões, na tentativa de salvar a si mesmas de toda e qualquer influência externa, colocaram o livro sagrado como verdade incontestável e infalível, configurando o que se chamou de fundamentalismo do livro. Judaísmo, islamismo e cristianismo, por serem religiões que se baseiam em um livro considerado sagrado – a torá, o alcorão e a bíblia, respectivamente – têm vários exemplos desse tipo de fundamentalismo religioso, mas o presente texto pretende se restringir a uma breve reflexão sobre as posturas fundamentalistas de algumas denominações cristãs: os testemunhas de Jeová, os mórmons, a igreja do reverendo Moon e as igrejas eletrônicas espalhadas pelo mundo.   
Os testemunhas de Jeová buscam uma vivência religiosa livre das sugestões exteriores, considerando o texto bíblico, em especial a tradução feita do inglês pela Sociedade da Torre Vigilante, como a única e inquestionável verdade, para a qual não se tem outra interpretação senão a que o próprio texto apresenta. Com base nesse pensamento fundamentalista, somente se pode chegar ao conhecimento da história e do que ainda está por vir através de uma leitura atenta e literal da bíblia, segundo a qual os maus serão aniquilados e os testemunhas sinceros povoarão a terra regenerada e viverão em paz. O pensamento religioso dos testemunhas de Jeová é legitimado por uma via de mão-dupla, onde o texto bíblico remete à autoridade do líder religioso e este remete ao texto bíblico como autoridade fornecida pela tradição, reforçando o caráter inquestionável dos seus fundamentos religiosos e refutando os que deles divergem.
Os mórmons também podem ser citados como um exemplo do fundamentalismo do livro, uma vez que os membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias procuraram retomar a tradição bíblica por meio da história original dos antigos povos da América – aos quais Jesus teria trazido seus ensinamentos. Para os mórmons, a verdadeira interpretação da bíblia se encontra no Livro do Mórmon, enquanto o livro Doutrina e Alianças procura comprovar a história do texto bíblico e o livro A Pérola de Grande Valor anuncia a proximidade futura de realização das profecias milenaristas contidas no texto bíblico. O pensamento religioso dos mórmons, a exemplo dos testemenhas de Jeová, também se manifesta na dupla vertente autoridade do líder religioso e textos sagrados, inviabilizando a possibilidade de outras interpretações.
A igreja do reverendo Moon também procura legitimar seu pensamento através da relação entre a autoridade do líder religioso e o livro sagrado, baseando-se unicamente no livro Os Princípios Divinos, escrito pelo coreano Sun Myung Moon. Segundo a leitura bíblica proposta por Moon, o pecado de Adão e Eva gerou a ruptura da aliança do homem com Deus e uma nova aliança com Satanás, levando os patriarcas e os profetas a tentarem, sem sucesso, pagar essa dívida espiritual, mas nem mesmo Jesus teria conseguido pagá-la por inteiro, sendo necessária a vinda de um novo messias que seja capaz de trazer de volta os homens para Deus por meio da família. Para os seguidores do reverendo Moon, ele próprio acabou se tornando o protótipo desse novo messias, o que acabou conduzindo a uma verdadeira idolatria.   
Por fim, um caso interessante desse fundamentalismo do livro é o das igrejas eletrônicas que se espalharam mundo afora. Apesar de usarem o texto bíblico como fonte de verdade, o pensamento religioso de tais igrejas é legitimado quase que exclusivamente pela autoridade do líder religioso e de suas interpretações do texto bíblico. Nesse caso, então, mesmo partindo do texto bíblico, o fundamentalismo difundido por essas igrejas encontra amparo principalmente nos conceitos morais apregoados pelos muitos pregadores da mídia, os quais reivindicam para si o título de ungidos de Deus e acabam sendo idolatrados pelos seguidores virtuais, que não hesitam em depositar quaisquer quantias para manter o ministério daqueles que se consideram “os verdadeiros homens de Deus”.