sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Não há lugar: uma reflexão natalina sobre os efeitos da religiosidade

Por Jurgen Souza

Todas as vezes que o natal se aproxima, as pessoas parecem se esconder por detrás daqueles enfeites coloridos e daquelas musiquinhas alegres. Conta-se e reconta-se a história do nascimento de Jesus, mas poucos são os que, verdadeiramente, refletem a respeito dos ensinamentos que esse acontecimento ocorrido há mais de dois mil anos pode trazer à vida contemporânea. Indubitavelmente, a sociedade em que vivemos nesse princípio de século XXI, imersa nos mais variados conflitos econômicos, políticos e sociais, tem ainda muito a aprender com essa história aparentemente tão conhecida. Este texto, no entanto, ater-se-á a um aspecto intrigante do relato bíblico (Lucas 2:1-7), o qual envolve o fato de Jesus, o filho de Deus que veio trazer salvação ao mundo, ter nascido numa manjedoura dentro de um estábulo.
            A tradição cristã incutiu no imaginário coletivo a ideia de que o nascimento de Jesus se deu nessas condições para que se cumprissem as profecias a respeito do tão esperado “messias”. Esse pensamento, porém, não tem comprovação bíblica, uma vez que não há registro de que nenhum profeta tenha feito tal afirmação. Embora a bíblia não seja a única fonte histórica que possa ser usada, é a ela que se apegam os muitos pregadores que vociferam tal forma de explicar essa questão. De acordo com o texto bíblico, o profeta Isaías afirmou que ele nasceria de uma virgem (Isaías 7:14), o profeta Miqueias afirmou que ele nasceria em Belém (Miqueias 5:2), e o profeta Zacarias afirmou que ele seria de origem humilde (Zacarias 9:9). Contudo, profecia alguma aponta para o fato de o redentor da humanidade nascer numa estrebaria.
Outra ideia equivocada e, ainda assim, muito veiculada a respeito desse aspecto do nascimento de Jesus faz alusão ao simples fato de que a hospedaria estaria lotada, o que haveria obrigado José e Maria a se abrigar numa estrebaria. Para legitimar esse pensamento conhecido no meio cristão, os pregadores costumam usar o argumento textual, enfatizando que a bíblia afirma que “não havia lugar na hospedaria”. É preciso, entretanto, esclarecer que tal afirmação acaba, na verdade, por distorcer o relato bíblico, já que omite uma expressão presente no texto que alteraria profundamente sua interpretação. O evangelho de Lucas apresenta como explicação para o nascimento de Jesus ter acontecido no meio de um estábulo o fato de “não haver lugar PARA ELES na hospedaria” (Lucas 2:7), o que permite compreender que o problema não era a falta de vagas na hospedaria e sim a impossibilidade de José e Maria conseguirem um lugar que os recebesse.     
            Muitos são os pregadores que procuram explicar essa impossibilidade a partir da condição sócio-econômica da família Jesus. De acordo com esse pensamento, José e Maria, por serem pobres, não teriam condições de pagar a hospedaria durante o período do recenseamento que os levou a Belém (Lucas 2:4), tendo Maria que dar à luz numa estrebaria. Muito embora eles não possuíssem mesmo uma boa condição financeira, cabe ressaltar dois pontos cruciais acerca do contexto em que tudo isso ocorre. Em primeiro lugar, era comum que, num período de recenseamento como esse, houvesse hospedarias para todos os gostos e bolsos, pois até mesmo as casas de família costumavam, momentaneamente, hospedar os de fora. Além disso, vale a pena lembrar que o ofício de carpinteiro (Mateus 13:55), se não permitia que José figurasse entre os homens mais bem escalonados na sociedade de sua época, certamente lhe dava ao menos o suficiente para o aluguel de uma hospedaria das mais simples por alguns dias.
          Todavia, a compreensão da real causa para não haver lugar para eles na hospedaria e, por isso mesmo, o nascimento de Jesus ter ocorrido num estábulo passa, antes de tudo, por uma análise a respeito dos costumes que envolviam a sociedade judaica. Assim, não se pode desprezar, de maneira alguma, a forte influência da religiosidade nos hábitos daquele povo, a ponto de as ações cotidianas serem totalmente orientadas por preceitos religiosos. A lei judaica considerava impura a mulher que estivesse prestes a dar à luz, bem como seria impuro tudo o que ela tocasse durante o tempo da sua purificação, que variava de 40 a 80 dias, a depender do sexo do bebê (Levítico 12:1-5). Como o relato bíblico deixa clara a condição de parturiente na qual Maria se encontrava (Lucas 2:5-6), é bastante provável que nenhum hospedeiro tenha se disponibilizado a recebê-la, obrigando seu esposo a buscar abrigo numa estrebaria para que ela não desse à luz ao relento. Jesus, desde o momento do seu nascimento, foi vítima da exclusão e da opressão social ocasionadas pelo apego demasiado do povo judeu à religiosidade.
            Mesmo que atualmente nosso contexto social seja bem diferente da época em que Jesus nasceu, ainda é perceptível a existência da exclusão e da opressão social que a religiosidade exacerbada pode ocasionar. Em pleno século XXI, milhares de pessoas são discriminadas diariamente e inúmeros conflitos bélicos continuam sendo deflagrados por conta da intolerância religiosa. No Brasil, o radicalismo religioso demoniza e exclui, por exemplo, os praticantes das religiões de origem africana, desrespeitando-os como cidadãos, apesar de haver leis que defendam a liberdade religiosa em todo o território nacional. Ainda hoje, portanto, a pessoa de Jesus – por meio dos seus ensinamentos – não tem encontrado lugar na vida de muita gente, em virtude de uma religiosidade cega que acaba, na verdade, invalidando a mensagem que Ele veio trazer ao mundo.    
           
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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Põe mais dendê nessa moqueca

Por Jurgen Souza


           Não foi à toa que, na cerimônia do encerramento do 21º Encontro Ibero-Americano de Afrodescendentes (reunindo representantes de 14 países da África, da América do Sul e do Caribe), Salvador foi declarada oficialmente a capital negra da América Latina. Dados recentes do IBGE confirmam que os afrodescendentes equivalem a 50,7% da população brasileira, sendo que, entre os soteropolitanos, esse percentual chega a 80%. Para além da constatação fria dos números, Salvador carrega consigo uma inegável herança cultural africana, traduzida em cores, sabores, ritmos e credos. Tal reconhecimento, em pleno século XXI, é fruto de uma história de luta e resistência que remonta ao passado e nos conduz, inevitavelmente, a uma reflexão a respeito das nossas origens.
A chegada dos primeiros africanos no Brasil deu-se ainda no primeiro século da colonização europeia. Depois de explorarem a força de trabalho indígena na extração do pau-brasil e no cultivo de cana-de-açúcar, tabaco e algodão no início do século XVI, as campanhas jesuítas contra a escravização dos nativos, dentre outros fatores, acabaram levando os portugueses a trazer para o Brasil, a partir do final daquele século, um grande contingente de escravos para servir de mão-de-obra na cultura agroexportadora do açúcar. Estima-se que, entre os séculos XVI e XVIII, chegaram ao Brasil cerca de 5 milhões de escravos africanos de várias etnias e falantes de mais de 200 línguas diferentes. Os estudos a respeito desse assunto relatam que, nesse período, um milhão e trezentos mil escravos africanos teriam desembarcado somente na Bahia. A maioria desses escravos foi levada para o interior do país, para trabalhar nas lavouras da cana-de-açúcar, na extração de minérios e nas lavouras do café. Submetidos a exaustivas jornadas de trabalho e aos maus tratos dos capatazes, os chamados escravos de lida viviam aglomerados em senzalas. Alguns escravos, porém, foram levados para ambientes urbanos. Dentre esses, alguns trabalhavam somente nas casas dos seus senhores (escravos domésticos), e outros faziam trabalhos externos remunerados, mas davam uma cota aos seus senhores em troca de uma futura alforria (escravos de ganho).
Até hoje, há divergentes opiniões dos historiadores a respeito da forma como os escravos africanos foram distribuídos geograficamente quando chegaram ao Brasil. Boa parte dos historiadores acredita que eles foram distribuídos de maneira tal que não ficassem juntos os que falassem a mesma língua, para evitar rebeliões e fugas, mas existem, por outro lado, indícios de uma possível língua franca africana em território brasileiro que enfraquecem essa hipótese. O fato é que vários movimentos de resistência foram surgindo ao longo dos anos, culminando na formação de muitos quilombos. O termo quilombo designa, de acordo com a Constituição de 1988 (art. 68), “a comunidade originada a partir de escravos fugidos ou ex-escravos, os quais procuravam viver isoladamente, desenvolvendo práticas de resistência e reproduzindo seus modos de vida característicos num determinado lugar”. As comunidades quilombolas que se formaram em locais ermos, distantes do ambiente citadino, eram chamadas de quilombos rurais, enquanto que as comunidades quilombolas formadas nos arredores de grandes cidades, sendo mais tarde incorporadas a elas, eram chamadas de quilombos urbanos.
O quilombo mais conhecido do Brasil foi o Quilombo dos Palmares, na região de Alagoas. Originado em 1629, esse quilombo virou símbolo de resistência, derrotando cerca de 30 expedições para destruir o agrupamento. Somente em 20 de novembro de 1695, com a morte de Zumbi (líder do quilombo), Palmares foi totalmente destruído. Atualmente, o dia da morte de Zumbi é comemorado como o Dia da Consciência Negra, reverenciando a ação heroica dos palmarinos diante do poderoso sistema escravocrata brasileiro. Todavia, esse quilombo – apesar da sua representatividade na luta africana por liberdade no Brasil – foi somente um dos tantos que surgiram em território brasileiro, sendo que mais de 300 quilombos foram formados só no Estado da Bahia, dentre os quais merecem destaque os que se formaram nos arredores da cidade de Salvador.  
Um dos mais antigos da Bahia, o Quilombo do Rio Vermelho, localizado onde hoje se encontra o bairro do Rio Vermelho, teve origem em 1629. Aproveitando o clima tenso trazido pela invasão holandesa em Salvador, um grupo de escravos fugiu e procurou abrigo nas frondosas matas das terras doadas por Tomé de Souza (Governador-Geral) a Antônio de Ataíde. A comunidade perdurou até 1632, quando foi destruída pelos capitães-do-mato Francisco Dias de Ávila e João Barbosa Almeida.
Outro quilombo de Salvador foi o Quilombo Buraco do Tatu, localizado onde hoje se encontra o bairro de Itapuã. Esse agrupamento teve origem em 1744, mantendo-se isolado por quase duas décadas e, em virtude das crescentes fugas de escravos na cidade de Salvador, tornou-se uma referência no tocante à manutenção das raízes africanas e na luta contra a escravidão na Bahia, desestabilizando, de todas as formas possíveis, o sistema escravista da época. Em setembro de 1763, porém, o quilombo foi destruído por uma expedição militar, comandada por portugueses.
Não se pode deixar de falar também no Quilombo do Urubu, localizado onde hoje se encontra o bairro de Pirajá. O agrupamento teve origem em 1826, com a fuga de vários escravos africanos que pertenciam a uma sociedade secreta anti-escravagista chamada Og Boni. Esse quilombo notabiliza-se pelo fato de ter sido liderado por uma mulher e pela deflagrada intenção de fazer uma revolução política na cidade. Zeferina e os demais quilombolas planejavam a tomada da cidade de Salvador, mas a comunidade foi destruída por tropas portuguesas em dezembro do mesmo ano, após uma sangrenta luta com os negros que lutavam por liberdade.

Os dados revelados pelo IBGE não explicam uma história como essa, mas parecem ser sintomáticos e apontam, segundo pesquisadores, para o crescimento cada vez maior da autoestima dos negros brasileiros, e especialmente os de Salvador, que passaram a assumir sua verdadeira identidade étnico-racial. Assim, é possível verificar que, embora os afrodescendentes, como bem disse a presidente Dilma Rousseff, ainda sejam os que mais sofrem com o desemprego, a extrema pobreza e a violência, que tem vitimado tantos jovens nas nossas periferias urbanas, a história de luta e resistência da capital negra da América Latina está no sangue.