sexta-feira, 1 de julho de 2011

Entre a lei e a graça: chamando Jesus para o debate

Por Jurgen Souza


            Considerado uma vitória na luta pelo respeito à diversidade e pela igualdade de direitos das minorias sociais, o reconhecimento por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, garantindo-lhes os mesmos direitos e deveres dos casais heterossexuais, acabou gerando uma grande mobilização das lideranças evangélicas, encabeçada pelos mais populares pregadores da mídia. Os protestos abrangiam outros temas, mas concentravam-se estrategicamente na decisão do STF e na possível aprovação pelo Senado do polêmico Projeto de Lei nº 122/2006, que criminaliza “a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, punindo tais crimes na forma da lei”. Longe de querer ajuizar a respeito das questões legais imbricadas nessa problemática, o presente texto deseja, na verdade, partir desse fato real que envolve a sociedade brasileira contemporânea para chegar a uma discussão mais centrada no comportamento esperado de um autêntico discípulo de Jesus em contextos de discriminação, exclusão e opressão social, enfocando a relação lei versus graça.
            Tomando por base diversos trechos da bíblia, principalmente os retirados das cartas paulinas, a questão da divergência entre a lei e a graça é um dos pontos mais recorrentes no discurso das igrejas evangélicas. Constitui-se uma verdade entre os cristãos evangélicos o fato de que todo e qualquer ser humano precisa da graça de Deus, uma vez que não há ninguém que possa alcançar a salvação por merecimento próprio ou por algum outro meio (Efésios 2:1-9). Do mesmo modo, os cristãos evangélicos consideram como verdade o fato de que, uma vez alcançado pela graça de Deus, o ser humano não deve estar mais sob a égide da lei, buscando ter posturas e ações que evidenciem entre os homens a condição de estar “debaixo da graça” (Romanos 6:15). Antes que alguém pense em dizer que tais leis eram apenas religiosas, vale aqui a ressalva de que, numa sociedade teocrática como a daquela época, as leis religiosas eram também as leis sociais.
Para não ficar restrito às cartas paulinas, as quais fazem na verdade uma releitura das narrativas dos evangelhos, é possível perceber claramente nas posturas e ações do próprio Jesus esse posicionamento em favor da graça. A respeito da lei, ele diz que veio cumpri-la e não destruí-la (Mateus 5:17), mas faz duras críticas a escribas e a fariseus por negligenciarem o mais importante dela, que é agir com justiça, com misericórdia e com fé (Mateus 23:23). Contudo, foram as atitudes de Jesus frente a situações polêmicas diante da lei que evidenciaram sua opção pela graça, levando-o a ser questionado, em vários momentos, pelos religiosos da época acerca de questões do cotidiano, principalmente as que envolvessem a prática da lei. Em geral, seu posicionamento expressava a ideia de que, ainda que estivesse escrito na lei, nada que atentasse contra a vida e a dignidade do ser humano tinha razão de ser, mesmo porque toda a lei se resumia em “amar a Deus e ao próximo” (Mateus 22:37-40), como se pode observar no seu encontro com a mulher apanhada em adultério (João 8:1-11) e na cura de um homem acometido de lepra (Lucas 5:12-14). 
A lei da época era taxativa nos casos em que uma pessoa fosse pega em adultério, condenando-a sumariamente à morte por apedrejamento em praça pública (Levítico 20:10). Quando os defensores da lei apresentaram a Jesus aquela mulher, já tão humilhada por estar sendo exposta publicamente e tão sem esperança por ter conhecimento da sanção a que estava sujeita, talvez esperassem dele a mesma atitude autoritária de outros líderes religiosos, optando pelo rigor da lei. Ao contrário, porém, Jesus, depois de um breve silêncio, ousou conduzi-los a se colocarem em lugar daquela mulher, evidenciando que, mesmo não concordando com as ações que ela havia praticado, todos eles compartilhavam igualmente com ela da condição de falibilidade humana e, nesse sentido, eram todos igualmente carentes da graça de Deus. Sua opção pela graça ao invés da lei priorizava, então, a preservação da vida humana, retornando aos mandamentos principais da própria lei.
Da mesma forma, a lei também era implacável nas situações que envolvessem alguém acometido de lepra. Criada inicialmente por uma questão de saúde pública, com o intuito de evitar a proliferação de uma doença até então sem cura, tal lei condicionava a pessoa leprosa a um contexto de evidente exclusão social e a expunha de forma vexatória diante de todos, uma vez que tal pessoa era obrigada a viver isolada à margem da cidade e, quando alguém tentasse se aproximar, deveria deixar clara a sua condição de excluída, gritando bem alto “Imunda! Imunda!”, para que ninguém a tocasse (Levítico 13:45-46). No seu encontro com aquele homem leproso, Jesus, ao contrário do que se esperava de um líder religioso da época, fez questão de estender a mão e tocar nele, realizando seu desejo de ser curado daquela enfermidade que, para além das limitações físicas, impunha-lhe dolorosas limitações sociais. Demonstrando a clara intenção de retirar aquele homem da segregação social à qual estava exposto, Jesus, depois de curá-lo, orienta-o a mostrar-se ao sacerdote e a oferecer o sacrifício devido para a purificação, já que a lei preconizava que somente o sacerdote, após a oferta do sacrifício, poderia considerá-lo puro e reinseri-lo no convívio social (Levítico 14:1-20). Ao optar pela graça em lugar da lei, Jesus dava, então, prioridade à restituição da dignidade humana perdida por conta do flagrante processo de exclusão e opressão social.   
O exemplo deixado por Jesus, e que deveria ser seguido por aqueles que se dizem seus discípulos, é o de fazer sempre uma opção pela graça, principalmente diante de situações em que a lei atente contra a vida e a dignidade humana, mas a vivência cotidiana dos cristãos evangélicos em meio à pluralidade do mundo contemporâneo tem revelado, salvo algumas poucas exceções, comportamentos fundamentalistas e excludentes, que em nada lembram as ações de Cristo. No que tange à decisão do STF e ao Projeto de Lei nº 122/2006 que tramita no Senado, cabe refletir sobre o que levou as autoridades nacionais a buscar resguardar a igualdade de direitos desse grupo de cidadãos brasileiros.  Sem sombra de dúvidas, foi a inegável existência de ações discriminatórias por porte de toda a sociedade brasileira – incluindo o segmento evangélico – em relação aos homossexuais que conduziu o órgão máximo da justiça brasileira a tomar tal decisão e o Congresso Nacional a debater leis que combatam o preconceito. Não se trata aqui, de maneira alguma, de defender essa ou aquela bandeira, mas de se pensar a respeito da propagação entre os homens da graça de Deus por intermédio das ações dos discípulos de Jesus Cristo, pois somente uma sociedade carente de ações práticas reveladoras da graça de Deus é que precisa recorrer à criação de leis e sanções específicas para coibir a discriminação, a exclusão e a opressão social.