sexta-feira, 9 de março de 2012

O ensino de língua materna e a diversidade linguística

Por Jurgen Souza

Marcada por uma acentuada heterogeneidade social, cultural e econômica, a história do nosso país aponta para a diversidade linguística que caracteriza a língua portuguesa aqui falada. A verdade é que o português falado no Brasil apresenta um alto grau de diversidade em virtude da sua grande extensão territorial e, sobretudo, da gritante desigualdade social que, desde os primeiros séculos de colonização, não permitiu que a maioria da população brasileira tivesse acesso aos padrões normativos da língua por ela falada. Contudo, essa diversidade linguística que se formou ao longo da história sociolinguística do nosso país parece ainda não ter atingido o ensino de língua materna, uma vez que boa parte das escolas brasileiras insiste em ensinar única e exclusivamente a variedade padrão preconizada pela gramática normativa, não reconhecendo como legítimas e considerando como erradas, numa atitude de flagrante preconceito linguístico, quaisquer outras variedades linguísticas.  
Não se pode negar que a história sociolinguística do Brasil, desde os primeiros séculos de colonização, foi marcada por uma bipolaridade no uso da língua. No Brasil Colônia, enquanto a reduzida elite colonial, alojada nos centros urbanos, procurava se manter fiel aos padrões gramaticais   lusitanos, a maioria da população – composta por negros, índios e mestiços  –  que se espalhava pelo interior do país falava um português aprendido de modo precário, sem instrutores ou escolas. Todavia, essa bipolarização linguística não é estanque, podendo-se verificar, a partir do início do século XX, uma clara tendência de aproximação entre os dois polos, já que o vigoroso processo de industrialização, a consequente urbanização e a popularização do ensino público foram ocasionando, segundo o pesquisador Dante Lucchesi, uma tendência de mudança no português popular em direção ao padrão urbano culto e, por outro lado, uma tendência de afastamento do padrão normativo europeu no chamado português culto. Mesmo com esse processo de aproximação entre a variedade popular e a variedade culta, é possível, porém, identificar ainda hoje a existência de muitas variedades linguísticas entre um extremo e outro. 
Os moldes em que a nação brasileira foi formada gerou, portanto, uma diversidade linguística que se tornou uma marca do nosso país.  Os diferentes usos da língua falada em território nacional denunciam, de imediato, o intenso processo de variação que os muitos estudos sociolinguísticos comprovam.  No entanto, de acordo com a pesquisadora Tânia Alkimim, as variedades encontradas na língua coexistem dentro de um processo de valoração social, pois essa coexistência se dá no contexto das relações sociais estabelecidas pela estrutura sociopolítica de cada comunidade, a qual costuma considerar algumas variedades como superiores e outras como inferiores. É possível, então, perceber muito claramente que existem variedades de prestígio e variedades não prestigiadas, sendo que, em sociedades de tradição ocidental como a nossa, a variedade linguística que goza de maior prestígio é, em geral, a variedade padrão, cujo uso é requerido pela comunidade em situações mais formais e definido como o modo “correto” de falar, motivo pelo qual as pessoas que não dominam tal variedade acabam sendo alvo do preconceito linguístico. O pesquisador Marcos Bagno declara que esse preconceito é fruto de uma confusão criada ao longo da nossa história entre língua e gramática normativa, sendo reproduzido e alimentado diariamente pelos meios de comunicação em massa, pelos livros didáticos e pela própria escola.
No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, os Parâmetros Curriculares Nacionais já orientam que a diversidade linguística seja trabalhada em sala de aula, no intuito de conduzir os alunos a reconhecer a legitimidade de todas as variedades linguísticas, inclusive as que se afastam da tradição gramatical. É importante ressaltar que não se trata de uma campanha contra o ensino da gramática normativa, até porque são notórias as relações de poder que estão envolvidas no uso da língua. Saber a variedade padrão prescrita pela gramática normativa é, de fato, necessário, uma vez que ela será exigida em algumas situações do cotidiano, podendo ser um instrumento de ascensão ou de exclusão social. Não se deve esquecer, no entanto, que essa é apenas uma das variedades da língua, sendo imprescindível que o estudante tenha ciência da existência de outras variedades linguísticas para que possa se desfazer do preconceito que muitas vezes lhe incutiram a respeito do seu próprio modo de falar.
Portanto, levar a diversidade linguística brasileira para a sala de aula de língua materna é, antes de tudo, uma atitude reveladora de respeito ao próprio usuário da língua, desenvolvendo-lhe a competência linguística necessária para o reconhecimento de que cada variedade linguística tem o seu lugar e o seu papel no âmbito do processo comunicativo para o qual a língua se presta. A escola, que, ao longo da história, sempre serviu aos interesses dos grupos dominantes – escondendo muitos fatos e inventando outros tantos –, depara-se agora com a possibilidade de reparar um dos muitos dos enganos a respeito da língua falada no Brasil. Contudo, é preciso que essa inclusão da diversidade linguística nas aulas de Língua Portuguesa esteja acompanhada de um melhor preparo do professor, sendo essencial que ele tenha acesso a um sólido arcabouço teórico a respeito do assunto, para que esse tipo de trabalho não seja, como muitas vezes ocorre, interpretado como uma tentativa de abolir o ensino da gramática normativa ou como a instituição do temido “tudo pode”. Nessa busca pelo aperfeiçoamento cada vez mais necessário ao papel de educador que o professor exerce, urge que ele saia da inércia intelectual e procure amparo na extensa literatura que tem se produzido acerca desse assunto tão debatido no meio acadêmico.

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