quarta-feira, 29 de junho de 2011

Um pouco da história da língua portuguesa falada no Brasil

Por Jurgen Souza

Se atualmente a língua portuguesa é a língua materna de quase toda a populaçãobrasileira, nosso país experimentava, nos primeiros séculos da colonização, uma situação de multilinguismo generalizado[1]. Em algumas regiões, predominava a língua geral de base tupi; em outros lugares, predominavam as línguas francas africanas; e havia ainda locais mais isolados (nos arredores dos engenhos ou nos quilombos), em que se falavam variedades crioulizadas do português. Diante dessa pluralidade cultural e linguística evidente nos tempos do Brasil Colônia, a consequência mais direta foi a alteração da língua trazida pelos portugueses, contando com a participação de indígenas e africanos na construção da modalidade da língua e da cultura representativas da – então insipiente – nação brasileira.
Durante o século XVI, o Brasil estava ocupado por muitos povos indígenas, falantes de tupi e de tupinambá, os quais foram rapidamente eliminados por guerras de extermínio, por epidemias de doenças europeias ou pela exploração dos portugueses. É importante ressaltar que, como a maioria dos colonos portugueses eram homens desacompanhados de suas famílias, houve uma tendência à miscigenação, mesmo porque a sociedade tupi-guarani aceitava naturalmente a inserção de estranhos como genros e cunhados. Surgem, então, os chamados mamelucos, que adquiriram inicialmente como língua materna o tupi – por conta do intenso contato com as mães –, mas depois se distanciaram social e culturalmente das sociedades indígenas, passando a manter contato constante com o português, o que gerou uma língua franca, chamada de língua geral, a qual pode ser classificada em dois tipos: língua geral paulista e língua geral amazônica.
A língua geral paulista tornou-se dominante na Capitania de São Vicente entre o século XVI e XVIII, de onde foi levada pelos bandeirantes – que eram mamelucos – para Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e províncias do Sul, enquanto a língua geral amazônica, falada por uma população mameluca desenvolvida através do contato dos índios tupinambá com os portugueses a partir 1615, foi a língua popular em toda a província do Amazonas e em grande parte da província do Pará até meados do século XIX, antes do ciclo econômico da borracha. Embora o português tenha sido sempre a língua oficial da colônia, seu estabelecimento como língua popular não aconteceu de maneira uniforme. Na costa leste e sueste, entre o Rio Grande do Norte e o Rio de Janeiro, o português foi, de fato a língua utilizada para comunicação desde o século XVI, mas na Capitania de São Vicente e, posteriormente, em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, a língua geral paulista foi o veículo de comunicação durante aproximadamente 200 anos, e no Maranhão, Para e Amazonas, a língua geral amazônica foi a língua popular durante quase 300 anos.
As línguas gerais de base indígenas serviram inicialmente como instrumento de comunicação adotado pelos portugueses para integrar a força de trabalho indígena na extração do pau-brasil e no cultivo de cana-de-açúcar, tabaco e algodão. Contudo, a resistência intrínseca do índio ao trabalho e as campanhas dos jesuítas contra a escravidão dos nativos fizeram com que o tráfico negreiro fornecesse a mão-de-obra necessária à implementação da cultura agroexportadora do açúcar, que se iniciou ainda no século XVI. A partir de então, a importação de escravos africanos para o Brasil cresceu bastante, principalmente em Pernambuco e na Bahia, permitindo o avanço da língua portuguesa em território brasileiro, mesmo que, em alguns agrupamentos mais etnicamente homogêneos, os escravos pudessem fazer uso de uma língua franca de base africana que servisse para a comunicação entre eles.
            De acordo com a pesquisadora Yeda Pessoa de Castro, as muitas línguas africanas trazidas ao Brasil por intermédio dos escravos que vieram para cá eram originárias de duas partes da África: a África Ocidental e a África Banto, territórios da família linguística Níger-Congo. Os escravos vindos da África Ocidental – do Senegal à Nigéria – trouxeram as línguas do subgrupo Kwa, tais como iorubá, ibô, ewe, fon, nupe ou tapa, twi-fante, axante. Por outro lado, os escravos vindos da África Banto – da linha do equador ao cone sul-africano – trouxeram as línguas do subgrupo Banto, tais como quimbundo, quicongo e umbundo. Acredita-se que os africanos de mesma etnia não tenham sido levados para o território brasileiro numa mesma época, com o intuito de impedir a comunicação entre eles e, é claro, o surgimento de revoltas e rebeliões. Todavia, segundo a pesquisadora Margarida Petter, muitos escravos de etnias e línguas diferentes eram forçados a conviver juntos por um determinado tempo antes mesmo de embarcarem para o Brasil, possibilitando cogitar a hipótese de que as línguas francas africanas que teriam sido utilizadas em território brasileiro já haviam sido delineadas ainda em terras africanas.
Já em território brasileiro, os africanos foram espalhados pelo interior do país e quase não tiveram contato com a cultura europeia e, consequentemente, com a variedade padrão da língua portuguesa, restringindo-se à convivência com colonos portugueses pobres e pouco escolarizados, com os quais adquiriram o português como segunda língua. Segundo o pesquisador Dante Lucchesi, a chegada do grande contingente de escravos africanos por meio do tráfico negreiro acabou por colocar os negros que aqui chegaram e seus descendentes numa situação paradoxal. Eles foram, por um lado, vítimas de uma violenta repressão cultural e linguística que não permitiu a conservação das muitas línguas africanas que chegaram aqui e, por outro, os principais protagonistas no processo de difusão da língua portuguesa no Brasil, contribuindo para que o contato linguístico dos muitos falares africanos com a língua portuguesa trazida da Europa gerasse as características mais notáveis da fala popular brasileira.
A história sociolinguística do Brasil, nessa época, aponta para um cenário bipolarizado, no qual as cidades, pouco populosas e geralmente situadas no litoral, eram reduto exclusivo de uma reduzida elite colonial, que procurava aproximar-se e manter-se fiel ao padrão linguístico lusitano, enquanto a maior parte da população colonial – espalhada pelo interior do país – quase não tinha contato com a cultura europeia e, consequentemente, com a variedade padrão da língua portuguesa, restringindo-se à convivência com colonos portugueses pobres e pouco escolarizados, com os quais adquiriram precariamente o português como segunda língua. Apesar de todo esse processo ter origem nos ambientes rurais – para onde a maioria dos escravos foi levada –, os resultados desse contato linguístico acabaram atingindo também os ambientes citadinos.
Depois da abolição da escravatura, boa parte dos africanos e seus descendentes, os quais já eram quase 70% dos três milhões e trezentos mil habitantes do Brasil no início do século XIX, migrou para as cidades, por conta do processo de industrialização e urbanização que atraía mão-de-obra barata, e acabou inserida nos diversos setores da atividade produtiva, mesmo que se concentrasse nos estratos menos elevados da sociedade, servindo, assim, de transmissor desse português tipicamente nosso. Dessa forma, certas mudanças ocorridas na fala popular penetraram na fala das camadas médias e altas, eliminando as marcas distintivas mais características do contato linguístico ocorrido nos primeiros séculos de colonização e propiciando o surgimento de alguns traços típicos do chamado português popular brasileiro.



[1] Termo cunhado pela renomada pesquisadora Rosa Virgínia Mattos e Silva.



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