segunda-feira, 27 de junho de 2011

Língua, poder e diversidade: a polêmica do livro didático do MEC

Por Jurgen Souza

O mundo pós-moderno tem vivenciado, nas últimas décadas, importantes tentativas de abolir os comportamentos sociais preconceituosos criados pela elite dominante e há muito tempo arraigados em nossa sociedade. Já é possível, por exemplo, perceber um relativo progresso – ainda que com dificuldades – no que diz respeito à quebra de preconceito contra as mulheres, contra os negros e contra os homossexuais. Contudo, o preconceito linguístico ainda continua latente em uma sociedade que usa questões relacionadas à língua como um mero pretexto para a prática de segregação social. Um exemplo claro dessa postura excludente foi o patético reboliço da mídia nacional contra o livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor, distribuído pelo MEC para a educação de jovens e adultos.
A autora do livro, professora Heloísa Ramos, destaca já na introdução que “falar é diferente de escrever” e que, ao contrário do que ocorre na fala, “a língua escrita exige um aprendizado formal” (p. 11), chamando a atenção para o fato de que “um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana” (p. 12). O livro, então, exemplifica essa situação dizendo que, no dia a dia, o aluno pode até falar “os livro”, sem aplicar a regra de concordância nominal, mas que ele deveria ficar “atento”, uma vez que, “dependendo da situação”, poderia “ser vítima de preconceito linguístico” (p. 15). O texto, redigido de maneira muito clara e didática, conclui alertando que “o falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião” (p. 15).
No que tange ao ensino de língua materna na atualidade, um dos principais objetivos é informar o aluno a respeito da pluralidade linguística brasileira, desenvolvendo-lhe a capacidade de perceber a existência de outras variedades linguísticas que não a variedade padrão e de admiti-las como legítimas em seu universo cultural e, portanto, dignas de respeito. Não se trata, nesse caso, de uma campanha contra o ensino da variedade padrão preconizada pela gramática normativa, até porque são notórias as relações de poder que estão envolvidas no uso da língua, levando em conta que o domínio de tal variedade exigido em algumas situações do cotidiano pode ser um instrumento de ascensão ou de exclusão social. Não se deve esquecer, no entanto, que a variedade padrão é apenas uma das variedades da língua, sendo imprescindível que o estudante tenha ciência da existência de outras variedades linguísticas, desfazendo-se do preconceito que muitas vezes lhe incutiram a respeito do seu próprio modo de falar.
Alardeando equivocadamente a ideia de que o livro ensinava a falar “errado”, a imprensa brasileira provou apenas um profundo desconhecimento do livro didático que foi alvo das críticas, bem como das muitas pesquisas acadêmicas acerca da língua portuguesa falada no Brasil e dos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, os quais, aliás, estão em pleno acordo com as recomendações de inúmeros estudiosos do ensino de língua materna. Ao invés de buscar conhecer o objeto de sua crítica, como se espera de um trabalho jornalístico sério, quase todas as reportagens se limitavam a pinçar a dedo uma ou duas frases do livro, sem sequer levar em consideração o contexto em que estavam inseridas. Tal comportamento da imprensa brasileira com relação ao livro didático do MEC só comprova que, para a elite dominante, detentora do poder midiático no Brasil, o reconhecimento da diversidade linguística ainda é visto como uma ameaça.
Não é de se estranhar que isso ocorra, pois a história dos primeiros séculos do nosso país aponta para essa flagrante segregação social externalizada por meio do uso da língua. Desde o século XVI, a realidade linguística brasileira era bipolarizada, segundo afirma Dante Lucchesi, um dos maiores pesquisadores da língua portuguesa falada no Brasil. As cidades, pouco populosas e geralmente situadas no litoral, não influenciavam as distantes povoações interioranas e eram reduto exclusivo de uma reduzida elite colonial, a qual, como era de se esperar, procurou aproximar-se e manter-se fiel ao padrão linguístico lusitano, submetendo-se ao cânone português até o início do século XX. A maior parte da população colonial – formada principalmente por índios nativos e negros escravos, e espalhada pelo interior do país – quase não tinha contato com a cultura europeia e, consequentemente, com a variedade padrão da língua portuguesa, restringindo-se à convivência com colonos portugueses pobres e pouco escolarizados, com os quais adquiriram, sem instrutores ou escolas, o português como segunda língua. Mais tarde, esse português precariamente adquirido chegou também, por conta do êxodo rural, à periferia dos grandes centros urbanos, constituindo o chamado português popular brasileiro.
Como a língua tem sido historicamente um poderoso instrumento de dominação e de construção da hegemonia do segmento dominante, esse levante de uma mídia elitista reacionária contra o ensino da diversidade linguística nas escolas enseja apenas legitimar a manutenção do status quo de uma pequena parcela da população, discriminando as formas de expressão das classes populares ou, mais precisamente, os usuários dessas variedades linguísticas consideradas inferiores. Longe de ser prejudicial, o reconhecimento da diversidade linguística é essencial a uma escola democrática e inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno, sem menosprezar sua bagagem cultural. Prejudicial mesmo, por ser um ato inaceitável de violência simbólica e de segregação social, é a imposição de uma única forma de usar a língua.

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