domingo, 17 de julho de 2011

Dez ave-marias e cinco pai-nossos

Por Jurgen Souza

                 Como toda cidadezinha do interior, Bom Jardim respirava os ares da tranqüilidade. As poucas casas do lugar abrigavam gente humilde. A única praça era a da igreja, que ficava de frente para o rio. A maior riqueza daquele povo pobre era mesmo o rio. Às margens do São Francisco, qualquer um, por mais pobre que possa ser, ainda assim é rico. Muitos ali mal tinham o que comer, mas não havia um sequer que não se orgulhasse de ter nascido e crescido junto ao Velho Chico. Distante da capital, muito mais ainda do progresso, perdida no sertão baiano, nem luz elétrica havia na cidade. As noites eram iluminadas pelos candeeiros de querosene. Mas o céu, sempre limpo, era o maior espetáculo noturno. As estrelas e, vez em quando, a lua bailavam cintilantes num convite ao romance. Foi ali que conheci o primeiro e único amor da minha vida.
            Eu era ainda uma menina de quinze anos. Bons tempos aqueles! Meu pai era um simples pescador e minha mãe não sabia fazer outra coisa se não cuidar da casa. Morávamos numa casinha de três cômodos – quarto, cozinha e banheiro – feita de taipa. Éramos só eu e eles. Depois de mim, minha mãe não conseguiu mais ter filhos. Éramos pobres, mas nunca nos faltou alimento; comíamos o que o Velho Chico nos dava, e ele sempre nos dava algo. Meu tempo era dividido entre ajudar minha mãe com as tarefas de casa e os estudos na escola. Meus pais não queriam que eu fosse como eles, analfabetos, por isso faziam das tripas coração para me dar ao menos caderno, lápis e borracha. Era o que o parco dinheirinho dava para comprar.
            Ele tinha o dobro da minha idade. Era um forasteiro que se encantou com as lendas ribeirinhas e acabou ficando. Lembro-me com detalhes do dia em que chegou à cidade. Foi num fim-de-tarde do mês de dezembro. Posso até ouvir o vapor apitando na chegada ao cais. Quando o vapor chegava, era um alvoroço só. As crianças todas sempre queriam visitar o barco. Rapazes e moças corriam para a praça, curiosos para conhecer gente nova. Mas meu pai nunca me deixava ir. Dizia que não era coisa para moça de família. Foi da janela lá de casa que o avistei, de longe, pela primeira vez. Estava indo em direção à pousada de dona Mariazinha, a única da cidade. Era um historiador recém-formado, mas, como ninguém sabia o que era isso, todos o chamavam de professor. E foi o que ele acabou sendo quando decidiu ficar. Ensinava história no colégio da cidade. A já comum falta de livros didáticos não foi problema para ele; nunca precisou deles. Ensinava àquele povo uma história que livro nenhum contava: a deles. Foi ele também que deu a idéia de comprar lamparinas a gás para que pudesse ter aula à noite. Em pouco tempo, Eduardo havia se tornado uma das pessoas mais queridas da cidade.
            No meu primeiro dia de aula com ele, passei o tempo inteiro apreciando sua beleza. E esse não era um privilégio meu. Todas as meninas suspiravam por ele. Mas foi num dia ensolarado de domingo, quando voltava da beira do rio – havia ido apanhar uns peixes que meu pai pescara para o almoço –, que tudo começou. Vinha tão distraída com o balaio de peixes que não o vi aproximar-se. Quando ele falou meu nome, perdi as forças e os peixes caíram ao chão. Ele, gentilmente, restituiu-me os peixes ao balaio. Ficamos nos olhando silenciosamente, por alguns segundos, até que lhe disse que minha mãe estava à minha espera para terminar o almoço. Daí para nosso primeiro encontro, ainda se passaram alguns meses. Eu não era uma moça espevitada, e ele era muito discreto.
            Encontramo-nos, por fim, ao raiar do dia. Ele havia deixado, no dia anterior, um bilhete na minha carteira, junto à prova. Eu tive que dizer à minha mãe que estava indo para uma aula de educação física. O local do encontro era debaixo de um velho cajueiro, perto de um campinho de futebol. Tremia como bambu, mas bastou que ele segurasse minha mão para devolver-me a tranqüilidade. Como não sabia muito bem o que dizer numa hora como aquela, pedi-lhe um beijo. Nunca havia beijado alguém antes, e a sensação foi a de ter nascido exatamente naquele instante. E nasci mesmo; para a vida, para o amor. Os encontros, pouco a pouco, foram-se tornando habituais, mas, à medida que o tempo passava, precisávamos de um lugar reservado, longe dos olhos e da língua afiada de todos. Ele, então, resolveu sair da pousada e alugou uma casa perto da minha, para facilitar as coisas. Estávamos apaixonados um pelo outro. Eu talvez demonstrasse mais, muito mais.
            Nada, porém, parece ter marcado mais minha vida do que a primeira vez que fizemos amor. Eu era totalmente inexperiente. Nunca nem havia conversado sobre essas coisas com ninguém. Tinha medo de engravidar ou adoecer ou qualquer outra coisa. Tinha medo de doer – ouvi, certa vez, escondida atrás da porta, minha mãe dizendo à comadre Sininha que doía e muito. Mas ele me explicou tudo com paciência e me disse que só faria quando eu lhe pedisse. Eu quis por diversas vezes, mas nunca lhe pedi, até que um dia o calor do corpo falou mais alto e praticamente supliquei. Pode parecer até heresia dizer isto, mas foi divino. A partir de então, não havia um encontro em que eu não fosse assim toda dele e ele assim todo meu.
            Certo dia, ao término do encontro, ele contou-me a respeito dos comentários que havia escutado sobre nós. Estava preocupado com minha reputação, afinal eu era moça de família e meus pais não faziam idéia do que estava acontecendo. Afirmou que seria difícil, mas que talvez fosse melhor que ficássemos algum tempo sem nos encontrar. Se os falatórios continuassem e chegassem aos ouvidos do meu pai, poderia suceder uma desgraça. Confortou-me num longo abraço, dizendo-me que eu era forte e que não tardaria para que as coisas se acalmassem e voltássemos a nos ver. Despedi-me, então, com os olhos lacrimosos, mas com a esperança de que, apesar de penosa, a distância não seria duradoura. Ademais, o que ele me havia dito parecia ser mesmo verdade, pois minha mãe e até meu pai vieram-me com umas perguntas estranhas, que, a princípio, não me denunciavam, mas poderiam ser indícios de desconfiança.
            O que jamais poderia imaginar, porém, era que sofreria tanto com essa separação. Sem vê-lo por tantos dias, comecei a entristecer-me deveras. A tristeza, com o tempo, tornou-se em mal-estar. Os enjôos se sucediam um ao outro, até que, dando-me por conta, percebi que estava grávida. Gerava em meu ventre o fruto do nosso amor. Essa descoberta, no entanto, deixou-me apreensiva. Meus pais não poderiam saber, não tinha ninguém com quem pudesse me aconselhar, tampouco sabia o que fazer. Não me restava outra possibilidade, se não procurá-lo para encontrarmos uma saída para a situação.
            Fui, então, à sua casa, não para mais um encontro amoroso, mas para decidir o destino de minha vida. Todavia a cena que presenciei traçou, em questão de segundos, todo o meu destino. Eduardo estava nos braços de outra aluna do colégio, talvez lhe dizendo todas as palavras doces que um dia me disse ou ensinando-lhe o caminho da felicidade, como ensinou a mim. A dor insuportável que senti fundiu-se ao ódio visceral que emergia de mim, tornando-me ensandecida. Sem que fosse vista por eles, apossei-me da peixeira que estava na cozinha e invadi o quarto, golpeando-lhe o peito. A moça, coitada, desmaiou de medo. Enquanto ele agonizava no que havia sido o nosso leito de amor, contei-lhe, sussurrando ao ouvido, sobre a gravidez. Mas não permiti que dissesse palavra. Virei as costas e fui embora. Sequer voltei em casa; cortei caminho por entre os matos e cheguei à estrada.
            Não foi fácil, para mim, guardar esse segredo durante todos esses anos. Hoje, Bom Jardim já não é mais tão pequena e tranqüila assim. O progresso há muito já chegou por lá. Mas eu precisava ao menos desabafar com alguém, retirar dos meus ombros o pesado fardo que carrego comigo desde que vim embora. Confesso que matei o único homem que amei de verdade em toda a minha vida, mas não me arrependo. Se tivesse de matá-lo novamente, não hesitaria. Meu maior pecado, porém, e essa é a culpa que carrego, é que matei a mim mesma. Acabei, de uma vez por todas, com qualquer possibilidade de ser feliz. Estou viva porque ainda respiro, mas no fundo, no fundo não é assim que me sinto. Estou preparada para pagar pelo que fiz. E para encerrar logo este assunto, diga-me, padre, qual será minha penitência?

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