sábado, 6 de agosto de 2011

As aparências enganam

Por Jurgen Souza

            Um dos aspectos mais valorizados no mundo contemporâneo é a imagem. Vivemos em um tempo em que não importa muito o que você de fato é, mas sim o que você parece ser. O cotidiano por demais agitado em que estamos inseridos não nos permite desenvolver relações mais profundas e acaba nos conduzindo a enxergar o outro apenas superficialmente. Por conta disso, as relações humanas estão cada dia mais marcadas pelo preconceito (um conceito formado antes de se ter uma visão mais aprofundada), evidenciando nossa clara preferência pelas aparências.
Até mesmo – e, por que não dizer, principalmente – os cristãos, que foram orientados por Jesus a vivenciar uma dimensão mais profunda de relacionamento com o outro (João 15:12), têm optado por valorizar somente as aparências. Todavia, como podemos perceber através do filme “A luz da escuridão” – anexado propositalmente a este texto –, as aparências enganam. Infelizmente, porém, o meio cristão está repleto de pessoas que se deixam enganar pelas aparências, acreditando piamente que Deus só pode manifestar sua graça por intermédio daqueles a quem julgamos – em geral pelas evidências externas – "santos".
Por conta do preconceito religioso, acabamos limitando o agir do Deus que nós mesmos dizemos acreditar que pode todas as coisas, esquecendo-nos de que, para muito além das aparências, Ele vê o coração (1 Samuel 16:7b). O mais impressionante, contudo, é que tal atitude preconceituosa por parte de muitos cristãos revela o desconhecimento ou o não-entendimento da orientação que o próprio Jesus deu a esse respeito, como relata o texto bíblico de Lucas 10:25-37. Nessa passagem bíblica muito lida entre os cristãos, Jesus dialoga com um homem religioso que deseja saber como ter a vida eterna e é orientado por Jesus a cumprir o que a lei diz: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com todo entendimento, e o próximo como a ti mesmo”. Aquele homem religioso, sabendo que, mesmo sendo doutor da lei, não a cumpria na prática, pergunta então a Jesus como saber quem seria o “próximo” que a lei determina que devemos amar, e Jesus responde contando uma parábola (história usada para facilitar o entendimento).
A parábola usada por Jesus envolve três personagens muito conhecidos no universo religioso daquele homem: um sacerdote, um levita e um samaritano. O sacerdote era um líder religioso importante, responsável – na religião judaica – por receber a mensagem de Deus numa parte reservada do templo, chamada de santo dos santos, e depois transmiti-la ao povo. O levita era um ajudante do sacerdote, responsável por preparar o altar para os holocaustos (sacrifícios), comuns na religião judaica. O samaritano – habitante da cidade Samaria – fazia parte de um povo considerado idólatra com quem os judeus tinham uma antiga rixa (João 4:9b). Na verdade, houve um tempo em que a cidade de Samaria pertencia aos judeus, mas foi invadida pelo império assírio por volta do ano de 722 a.C., sendo que seus novos habitantes, apesar de serem de várias origens – já que o exército assírio era formado por homens de vários outros povos dominados pelo império –, passaram a ser chamados de samaritanos e, desde aquela época, passaram a ser odiados pelos judeus (2 Reis 17:24-41).   
            O relato da parábola conta que um homem vinha de Jerusalém para Jericó, mas foi assaltado, espancado pelos malfeitores e estava quase morto, caído na estrada (provavelmente todo ensanguentado e desacordado). Pelo mesmo caminho, passaram um sacerdote, depois um levita e, por último, um samaritano, mas somente este deu socorro ao homem assaltado. Os dois primeiros passantes seriam, aparentemente, os mais “santos” e dignos de serem instrumentos da ação da graça de Deus na vida daquele homem, no entanto eles fizeram questão de passar longe, talvez porque tenham colocado seus próprios interesses como prioridade, já que a lei dizia que, se o sacerdote ou o levita tocassem em um morto – e o homem estava quase morto –, seriam considerados impuros e seriam impedidos temporariamente de exercer seus cargos religiosos (Levítico 21:1-2).
O terceiro passante certamente seria, observando apenas as aparências, o que teria menos motivos para prestar socorro ao homem assaltado, porque estava de viagem em terra estranha e, principalmente, porque sabia que aquele homem era um judeu – e os judeus odiavam os samaritanos. Mesmo diante disso, aquele samaritano decidiu parar e ajudar o homem caído, prestando-lhe ali mesmo os primeiros socorros, levando-o depois para uma hospedaria onde seria melhor cuidado e deixando uma quantia com o hospedeiro para que pudesse tomar todas as providências necessárias. Perceba que, contrariando as aparências, o samaritano não levou em conta seus próprios interesses, mas investiu seu tempo, seu cuidado e seu dinheiro no nobre empreendimento do amor ao próximo.
Então, depois de contar a parábola, Jesus retoma o diálogo com o doutor da lei e pergunta qual daqueles três havia sido o “próximo” do homem assaltado, e ele – mesmo se recusando a afirmar que fora o samaritano – responde que havia sido o que teve misericórdia do homem. Jesus, demolindo todas as barreiras do preconceito que os judeus tinham a respeito dos samaritanos, afirma ao doutor da lei que, se ele quer ter de fato a vida eterna, deve fazer a mesma coisa que aquele samaritano fez. Essa afirmação contundente evidencia um Cristo que não está preocupado com as aparências religiosas, mas que deseja manifestar a sua graça ao mundo por meio daqueles que verdadeiramente abram mão dos próprios interesses em favor do outro.  

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