Por Jurgen Souza
Com o amparo da compreensão literal de diversos trechos da bíblia,
construiu-se em nossa sociedade uma imagem da mulher como um ser de segunda
categoria e, portanto, inferior ao homem, a quem ela deve ser silenciosamente
submissa. Esse pensamento preconceituoso, que remonta aos primórdios da
humanidade, tem sido usado ainda hoje para legitimar a visão de que a mulher,
considerada mais frágil, seria incapaz de assumir papéis de liderança, inclusive
nas igrejas. Essa vergonhosa postura
dogmática e excludente das religiões cristãs fez com que a liderança
eclesiástica sempre estivesse associada ao universo masculino, minimizando o
importante papel da mulher nessa esfera da sociedade. Instigado por essa triste
realidade, o presente texto pretende apresentar uma leitura inclusiva de I
Timóteo 2:9-15, o qual orienta que as mulheres devem ficar em silêncio na
igreja e, por isso mesmo, tem sido utilizado entre os cristãos para negar a biblicidade
da liderança feminina.
Antes de mais nada, porém, vale lembrar que as cartas
pastorais (I e II Timóteo e Tito) apresentam, de acordo com os teólogos contemporâneos, problemas com
relação à autenticidade e à autoria que precisam ser levados em consideração. Mesmo
reconhecendo nelas alguns traços identitários da tradição paulina e não
desmerecendo sua importância para o cristianismo, teólogos como Norbert Brox e
Günther Bornkamm acreditam ser mais provável que elas tenham sido escritas por redatores
posteriores a Paulo, apesar de seguirem o modelo
epistolar paulino e serem assinadas com o nome do apóstolo, já que seu
estilo, seu vocabulário e seu conteúdo diferem das cartas paulinas consideradas
autênticas (Romanos, Gálatas, I e II Coríntios, I Tessalonicenses, Filipenses e Filemon). No caso de I Timóteo, é muito
provável que tenha sido enviada por algum discípulo de Paulo ao jovem pastor da comunidade de Éfeso no final do
primeiro século, dando-lhe algumas orientações acerca de assuntos práticos da
vivência religiosa dos cristãos daquele lugar e enfatizando a necessidade de se
manter viva a tradição do evangelho de Jesus Cristo.
Uma das orientações mais polêmicas da primeira epístola a Timóteo, e que
parece divergir do conteúdo das cartas genuinamente paulinas, diz respeito à
postura que deveria ser assumida pela mulher na adoração pública, a qual inclui
a recomendação de que a mulher deveria ficar em silêncio na igreja. Teólogos
como Wayne Meeks, Marga Ströher e
Cristina Conti defendem que, em I Timóteo 2:9-15, o trecho contido entre o versículo
11 e o 15a apresenta um conteúdo que destoa do todo da carta, demonstrando a
possível existência de uma interpolação posterior à escrita original do texto, a
qual modificaria substancialmente a essência da mensagem original. Essa
suspeita parece ter fundamento, já que, retirando-se o trecho supostamente
interpolado, percebemos que a fluidez textual é mantida e não há comprometimento
da estrutura argumentativa, assim como, se analisarmos o trecho retirado
separadamente, percebemos que ele possui fluidez textual e estrutura
argumentativa próprias. Por conta disso, então, I Timóteo 2:9, 10, 15b e I Timóteo
2:11-15a não podem ser considerados como um único texto, evidenciando que a
parte interpolada foi adicionada depois com algum propósito diferente da parte
originalmente escrita.
Os historiadores bíblicos José Alonso Díaz e Henri Delafosse afirmam que tal
interpolação, bem como a interpolação contida em I Coríntios 14:34-35, teria
sido feita no final do século II, com o intuito de combater as ideias e as
práticas religiosas montanistas. O montanismo era um movimento cristão
considerado herético que surgiu na segunda metade do século II, na região da
Frígia, na Ásia Menor, sendo caracterizado por uma volta ao profetismo e por
uma mensagem escatológica. O que mais preocupava os cristãos tradicionais, no
entanto, era o fato de os montanistas considerarem a mulher como detentora de
um grande privilégio diante de Deus, por ter sido a primeira a comer do fruto
da árvore do conhecimento, fato que a colocava em posição de destaque nesse
grupo e permitia que ela pudesse exercer cargos eclesiásticos relevantes. Não é
à toa, portanto, que o trecho interpolado oriente a mulher a “aprender em
silêncio, com toda submissão” (v. 11), advertindo ainda que “não ensine, nem
exerça autoridade sobre o homem” (v. 12) e reiterando enfaticamente que “esteja
em silêncio” (v. 12), utilizando como principal argumento o errôneo pensamento
de que o pecado teria sido introduzido na humanidade por meio da mulher,
conforme se observa pelo trecho “Adão não foi enganado, mas a mulher é que foi
enganada e caiu em transgressão” (v.14). Não devemos nos esquecer, porém, de
que a leitura de Gênesis 3:1-24 demonstra claramente que homem e mulher foram
igualmente responsáveis pelo surgimento do pecado, a ponto de suas consequências
atingirem a ambos.
Não é o fato de o texto de I Timóteo 2:9-15 não ter sido escrito
exatamente por Paulo ou ter sido alterado em relação à escrita original que
fará, de maneira alguma, com que ele deixe de ser relevante, enquanto Palavra
de Deus, para os cristãos contemporâneos. Contudo, é imprescindível que nos concentremos nas lições de vida
transmitidas pelo trecho original do texto, sem deixar de explicar, é claro,
que as afirmações do trecho interpolado precisam ser entendidas a partir do
contexto em que foi escrito. A respeito do trecho original, expressão adverbial
“Do mesmo modo” (v. 9), que aparece logo no início do texto, aponta para um
contraste entre o que vai ser dito acerca da postura da mulher e o que havia
sido dito antes acerca da postura do homem na adoração pública. O requisito
exigido do homem para a adoração pública era uma vida reta diante de Deus,
conforme se observa pelo trecho “mãos santas, sem ódio nem discórdia” (v.8),
sendo exigida igual retidão também por parte da mulher, a qual não agradaria a
Deus pela aparência física, evidenciada pelos termos “tranças”, “ouro”,
“pérolas” e “vestidos caríssimos” (v. 9), mas pela prática da benevolência que
era conveniente às mulheres cristãs, como se pode perceber pelo trecho “se
vistam de boas obras” (v.10). No final, a orientação dada à mulher é que
“permaneça com domínio próprio na fé, no amor e na santificação” (v. 15b),
evidenciando a necessidade de uma vida de retidão que já havia sido exigida
também do homem.
Para que, nos dias de hoje, possamos fazer uma leitura de I Timóteo
2:9-15 coerente e fiel aos ensinamentos de Jesus, não devemos nos esquecer de
que a restrição à participação da mulher nas atividades eclesiásticas não é
uma orientação comum às comunidades paulinas, mas é fruto de um contexto
específico e, por isso mesmo, não deve ser entendida como um princípio bíblico
acerca da figura feminina dentro da igreja. Paulo, ao contrário, chega a recomendar a irmã Febe ao ministério da igreja em Roma, além de fazer menção a outras mulheres relevantes naquela igreja (Prisca ou Priscila, Maria, Júnia, Trifena, Trifosa, Pérside, a mãe de Rufo, Júlia e a irmã de Nereu), conforme lemos em Romanos 16:1-16. No texto de I Timóteo 2:9-15, a mensagem principal, comum a
homens e mulheres, é que devemos ter uma vida reta e digna aos olhos humanos
para que possamos adorar a Deus publicamente, já que são as nossas atitudes, e
não a nossa aparência, que dão testemunho da nossa fé. Essa compreensão, longe
de negar a relevância do texto enquanto Palavra de Deus, pode nos conduzir a
uma vivência religiosa mais includente e, consequentemente, mais anunciadora do
evangelho transformador de Jesus Cristo.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirDEIXO O CONVITE PARA VISITAR MEU BLOG.
ResponderExcluirEm Cristo,
***Lucy***