segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Lutero: dos retratos da vida aos pensamentos teológicos

Por Jurgen Souza

Filho de uma burguesa e de um funcionário de uma mina de cobre que atingiu a independência econômica, Lutero cresceu em uma família típica da burguesia ascendente na Alemanha do final do século XV, na qual o rigor e a disciplina conviviam com o amor. Em 1505, formou-se em Artes (semelhante ao atual curso de Letras) na Universidade de Erfurt, abrindo caminho para o curso de Direito, escolhido pelo pai. Naquele mesmo ano, porém, Lutero ingressava, sem o conhecimento do pai, no convento dos agostinianos observantes. Alguns dias antes, ele havia passado por uma tempestade e, em meio ao temor dos raios, fizera a promessa de ingressar num convento, caso saísse ileso daquela situação. Com um ano de noviciado, fizera os votos solenes e, no ano seguinte, ordenara-se monge, observando rigorosamente as regras monásticas. Em 1508, porém, a ordem o enviou para a nova universidade de Wittenberg, onde foi professor de Filosofia Moral e pôde prosseguir com os estudos teológicos, formando-se em Teologia em 1509, a partir dos quais passou também a lecionar Interpretação Bíblica. Em 1512, tornou-se doutor em Teologia e assumiu a cadeira de Bíblia na Faculdade de Teologia da Universidade de Wittenberg, sendo professor de Bíblia até o fim da sua vida.
Como professor da Universidade de Wittenberg, Lutero desenvolveu muitos estudos significativos, dentre os quais se destacam a interpretação de Salmos, de Romanos, de Gálatas e de Hebreus. Em 1517, ele enviou aos bispos aos quais devia obediência um escrito com 95 teses, que eram críticas justificadas a abusos na prática das indulgências e uma contribuição acadêmica para sua superação. O que Lutero pretendia era apenas produzir um esclarecimento teológico acerca da questão, pois a indulgência estaria relacionada ao sacramento da penitência, no qual se esperava o arrependimento do pecador, a absolvição e a satisfação imposta, que deveria ser uma reparação ou uma expiação feita pelo pecador por causa do castigo que o pecado acarretava. Surgidas no século XI, as indulgências diziam respeito, inicialmente, apenas aos castigos temporais impostos pela igreja; mais tarde, aos castigos temporais que deveriam ser purificados no purgatório; e finalmente, também aos pecados de parentes já falecidos que estavam no purgatório. A proposta de Lutero, em suas 95 teses, era limitar as indulgências às penas temporais impostas pela igreja, mas acabou causando frisson no clero católico, uma vez que criticava – com base em seus estudos de Romanos – a doutrina do “tesouro da igreja”.
As repercussões foram quase que imediatas. Em 1518, a ordem agostiniana alemã defendeu Lutero abertamente, inclusive permitindo que ele pudesse expor seu pensamento teológico central no que ficou conhecido como Debate de Heidelberg. Por essa ocasião, Lutero sistematizou seu pensamento em 28 teses teológicas e 12 filosóficas. As filosóficas criticavam a metafísica aristotélica e o esforço no campo da razão natural e das coisas visíveis como o único válido e correto. As teológicas diferenciavam a postura prática do ser humano e o conhecimento teológico, dividindo seu pensamento em três partes. Na primeira, ele afirmava que somente está apto a conseguir a graça de Cristo quem não confiar em si mesmo e nas suas realizações, mas colocar sua confiança totalmente em Cristo. Na segunda parte, Lutero afirmava que o conhecimento teológico só se encontra na humildade, pois só se pode reconhecer Deus no sofrimento e na fraqueza, no Cristo crucificado (teologia da cruz). Na terceira parte, por fim, ele afirmava que uma vida pautada na fé em Cristo faz com que as obras humanas sejam, na verdade, obras do Cristo que age no ser humano e através dele.
Tal discussão tinha como centro, para Roma, a autoridade do papa e da própria igreja. Por esse motivo, o papa Leão X convocou Lutero, na qualidade de herege, para que se retratasse, mas isso não aconteceu. Ele apelou solenemente ao papa, o qual – contrário a seu pensamento – decidira manter a prática da venda de indulgências. Lutero, então, valendo-se da teoria conciliarista, recorreu a um concílio da igreja. Apoiado pelos uma boa parte dos estudantes da Europa, principalmente da Universidade de Wittenberg, ele passou a ser visto como representante da nação alemã. Em 1520, uma bula foi publicada afirmando que 41 afirmações de Lutero eram heréticas e que ele deveria renunciar a seus ensinamentos, e os escritos que continham essas afirmações consideradas heréticas deveria ser queimados, senão ele seria excomungado, mas o que Lutero queimou foi a própria ameaça de excomunhão. Assim, em 1521, Martim Lutero fora excomungado da igreja católica romana e, posteriormente, considerado proscrito, gerando a ordem de que ele e seus adeptos fossem presos e a publicação de suas obras proibidas.
Por conta disso, Lutero foi obrigado a se refugiar em Wartburgo. Fora da Alemanha, ele passou por um período de solidão e de intensa produção literária, destacando-se a tradução do Novo Testamento, na qual usou o texto grego preparado por Erasmo e a elaboração de um livro de sermões. Escreveu ainda contra o papa, sobre a confissão auricular e revidou ataques das faculdades de teologia de Paris e de Louvaina. Enquanto isso, mesmo com sua ausência, o movimento reformatório expandiu-se rapidamente. Ao retornar a Wittenberg, Lutero discutiu questões relativas ao direito de comunidades cristãs convocarem pastores e demiti-los, à mendicância e ao dever de a autoridade secular criar e manter escolas, e às relações existentes entre autoridade civil e eclesial.
Nos anos de 1522 e 1523, movimentos sociais como cavalaria e camponeses começaram a ver em Lutero um possível aliado, levando-o a envolver-se com Andreas Bodeinstein, Tomas Müntzer, espiritualistas e anabatistas – até então oponentes a seu pensamento teológico. A partir de 1525, porém, a Reforma passou a ser uma questão que dizia respeito aos governantes, sendo instrumento que possibilitava que príncipes ou cidades ampliassem ou consolidassem seus poderes e posições. Em meio a todas essas mudanças Martim Lutero casou-se, em junho de 1525, com a ex-monja Katharina Von Bora, com a qual teve seis filhos. Nesse mesmo ano, Lutero escreveu um texto respondendo a Erasmo, que – pressionado pela Cúria – procurou distanciar-se dele no tocante à participação humana na concretização da salvação e à possibilidade de interpretação de algumas passagens bíblicas consideradas obscuras por um leigo. Lutero afirma que somente Deus pode salvar, não havendo nada que possa ser feito pelo ser humano para esse fim; destaca também que a clareza da Escritura está em Cristo, que possibilitaria o cristão compreender o texto bíblico. Ainda em 1525, Lutero e Zwínglio debatem acerca da eucaristia, pois este não aceitava a proposta da presença real no momento eucarístico.
Em 1530, foi convocada pelo papa Carlos V a dieta de Augsburgo, da qual Lutero não pôde participar por ser considerado proscrito. Na ocasião, Melanchthon – que havia sido aluno de Lutero em Wittenberg – elaborou a chamada Confissão de Augsburgo, na qual acentuava as diferenças do pensamento luterano em relação a zwinglianos, entusiastas e anabatistas, ressaltando os pontos em que os luteranos se aproximavam dos representantes da velha fé. Isso acabou possibilitando que a codificação pública de fé da Igreja Luterana fosse mais baseada na teologia “melanchthoniana” do que na “luterana”, afastando-se, por exemplo, da teologia da cruz proposta por Lutero. Quando finalmente o Concílio de Trento foi instalado, em 1545, já era quase impossível manter a unidade da igreja ocidental. A reforma religiosa já havia se tornado uma questão de responsabilidade de príncipes e cidades, mas não tornou Lutero – apesar de ele não estar mais no controle da reforma – uma peça sem importância. A tradução completa da Bíblia para o alemão, em 1534, e suas pregações sobre ética, com direito a ataques aos excessos dos príncipes no desempenho das suas funções, certamente contribuíram para a propagação dos ideais reformistas.
Nos últimos anos de sua vida, Lutero refletiu sobre a temática do fim dos tempos. A escatologia iminente, que aparece ao longo de toda a sua vida, parece agora ganhar mais força. Para ele, o anticristo está presente na vida da igreja, colocando de lado a palavra de Deus, Jesus Cristo e a Escritura, e assumindo seu lugar.  Assim, esse duelo entre a vinda iminente do reino de Deus e o anticristo, que tenta impedir sua vinda, remete-lhe certamente ao duelo entre a Reforma (consequência da vinda do reino de Deus) e a Contra-Reforma. Foi na certeza de que o Deus que justifica os seres humanos e os busca desesperadamente, apesar de todas as reações contrárias deles, que Lutero morreu em 1546.
Para além da sua vida, porém, ficaram seus pensamentos teológicos, os quais ainda hoje servem de base para a maioria das igrejas protestantes. O centro da teologia de Lutero é o primeiro mandamento do Decálogo, que ele descreve como “Devemos temer e amar a Deus e confiar nele sobre todas as coisas”. Todas as suas descobertas e seus escritos, bem como suas transformações pessoais e seu posicionamento político-social, vêm desse referencial. Ele chega a esse entendimento a partir da mesma pergunta feita pela teologia penitencial e pela piedade penitencial na Idade Média Tardia: “Como consigo um Deus misericordioso?”. Para Lutero, porém, a satisfação e as boas obras não respondem ao questionamento, pois conduzem, na verdade, o ser humano a colocar sua confiança em si mesmo e não em Deus. Na teologia luterana, o ser humano nada pode fazer para se aproximar de Deus, uma vez que todas as suas ações, inclusive as consideradas boas, estão enredadas pelo pecado.
Em busca de equacionar essa contradição, Lutero afirma que a justiça divina é um presente de Deus ao ser humano pecador, do qual Ele se compadece. Para se apropriar dessa justiça, o pecador não precisa fazer boas obras, necessitando unicamente da fé, sem a qual o ser humano estaria se colocando no lugar de Deus, vangloriando-se. Pela fé, o ser humano pecador, injusto, é justificado por Deus e inclina-se perante Ele, realizando boas obras de gratidão. Assim, segundo Lutero, a chave hermenêutica para entender a justificação do ser humano perante Deus é a diferenciação entre Lei e Evangelho. Se a Lei ordena que a justiça deve ser cumprida, acusando, condenando e mostrando ao ser humano sua verdadeira situação diante de Deus, o Evangelho aponta para Cristo, no qual está cumprida a justiça que é apreendida pela fé, anulando toda a condenação dos que estão sob a Lei. É importante salientar, no entanto, que a Lei não pode ser transformada em Evangelho, pois se tornaria em caminho que leva à salvação, deixando de apontar para Cristo e permitindo que o ser humano seja seu próprio salvador. Do mesmo modo, o Evangelho não pode ser transformado em Lei, pois se tornaria em missão a ser cumprida, deixando de ser uma dádiva, fazendo com que não se precise mais de Cristo.
Outra diferenciação muito importante que deve ser feita diz respeito ao que Lutero chamou de teologia da glória e teologia da cruz. Se a teologia da glória procura entender Deus a partir das obras da natureza, não reconhecendo o ser divino que se volta para a natureza, a teologia da cruz revela Deus a partir da sua característica de humanidade, de fraqueza, de loucura, presentes na cruz de Cristo. O “conhecimento natural” de Deus expressa a confiança do ser humano em si mesmo, ao invés de confiar em Deus, pois enquanto o ser humano quis reconhecer Deus a partir de suas obras, o próprio Deus quis ser reconhecido a partir de seu sofrimento, mostrando o poder da impotência, a força da fraqueza, a sabedoria da loucura, a glória do escândalo. Lutero, assim, critica a aplicação da lógica e da metafísica aristotélica no campo da teologia, já que, ao mesmo tempo em que a razão é o maior bem para a ordenação das coisas civis e para essa finalidade foi dada por Deus, ela em nada interfere nas questões relativas à salvação.
Na teologia luterana, a Bíblia é a única autoridade da igreja, pois tudo que nela existe deve ser deduzido dessa autoridade e só vale se estiver em concordância com ela. Assim, o conteúdo da Escritura, para Lutero, pode ser resumido na palavra Cristo. É ele quem confere credibilidade ao texto bíblico e, ao mesmo tempo, quem o interpreta. A igreja pode até ter criado o cânone dos escritos bíblicos, mas não pode ser considerada sua dona, porque – como Igreja de Cristo – ela deve se submeter à Escritura, permitindo que a própria Bíblia se auto-interprete, usando Cristo como a chave hermenêutica. Aliás, Lutero afirma – discordando de Erasmo – que a Escritura é totalmente clara e interpretável justamente porque Jesus Cristo é o seu conteúdo e porque deve ser interpretada em direção a ele. Ainda sobre a interpretação da Escritura, Lutero também diverge dos entusiastas, pois acredita que não são necessárias revelações pneumáticas especiais para compreender o texto bíblico.
Outro ponto fundamental na teologia de Lutero é a eclesiologia. Para ele, a igreja está fundamentada na palavra de Deus; uma não subsiste sem a outra. Assim, igreja seria o lugar onde o evangelho é pregado, onde os sacramentos do batismo e da eucaristia são administrados conforme a instituição de Cristo, onde o perdão dos pecados é anunciado e vivido, onde são vocacionados e ordenados servidores eclesiásticos e onde a oração está presente.  A eclesiologia luterana, porém, tem um conceito de sacramento divergente do que era utilizado na época, já que Lutero entende por sacramento apenas aquilo que foi expressamente instituído por Cristo, conferindo-lhe promessa, com a qual deve ser despertada a fé. Isso faz com que sejam considerados sacramentos apenas o batismo e a eucaristia, e não muito bem delineado se sacramento ou não o ministério eclesiástico.
No que tange à eucaristia, divergia da doutrina da transubstanciação, defendendo a presença real, além de fazer críticas à retenção do cálice aos leigos e à compreensão do momento eucarístico como sacrifício que o ser humano oferece a Deus. Lutero justifica no trecho bíblico “bebei dele todos” a ideia de que a comunidade deve receber todo o sacramento da eucaristia e não só parte dele. Ele também afirma que sacramento não é algo que o ser humano dá a Deus, mas o contrário, mesmo porque não é o ser humano que sacrifica Cristo, mas ele mesmo é quem se sacrifica pelo ser humano, e isso deve estar presente na eucaristia. Por fim, Lutero critica o fato de a igreja atribuir mais importância aos sacerdotes do que aos leigos, defendendo a ideia de que, apesar de o ministro eclesiástico seja ordenado pela comunidade para servir de maneira mais específica na igreja, isso não o confere poder algum, pois todos os cristãos participam do sacerdócio de Jesus Cristo.
A ética em Lutero deve ser entendida a partir de seu pensamento sobre reforma. Imerso numa sociedade em que os mais diferentes segmentos esperavam por “reformas”, cada um com suas expectativas, é possível perceber a esperança de que igreja e sociedade caminhem para um futuro melhor como o conceito predominante de reforma nesse período. Para Lutero, porém, o conceito de reforma nada tem a ver com isso, pois ele não acreditava que nenhum esforço humano fosse capaz erigir o reino de Deus na terra, já que para ele apenas Deus poderia erigir o seu reino. Por conta desse seu conceito agostiniano de reforma, ele foi contra toda e qualquer investida do ser humano para imprimir uma reforma. Sua teologia, no entanto, não pregava a apatia. Lutero lutou por boas obras, não como mérito diante de Deus, mas como serviço necessário ao mundo e a suas instituições, e a isso não chamou de reforma, mas de “melhoramento”. Na teologia luterana, portanto, as boas obras não produziam salvação da alma, mas certamente produziam a salvação da sobrevivência num mundo em perigo.

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