Por
Jurgen Souza
As
estatísticas do IBGE apontam, desde as últimas décadas do século
XX, para um vertiginoso crescimento do percentual de brasileiros que
se dizem evangélicos. Em 1980, os evangélicos representavam apenas
6,6% da população; em 1991, eles eram 9% da população; em 2000,
esse percentual saltou para 15,4% da população; e em 2010, uma
parcela de 22,2% da população brasileira já se declarava
evangélica. Todavia, ainda que os evangélicos tenham mesmo crescido
quantitativamente, essa explosão
gospel
parece não ter atingido qualitativamente, salvo raríssimas
exceções, a sociedade brasileira ou mesmo a vida diária da maioria
dos fiéis que lotam as igrejas evangélicas país afora,
favorecendo, assim, a proliferação de práticas sociais e de
vivências religiosas que em nada lembram os ensinamentos de Jesus. O
mais assustador, porém, é que, embora existam diferenças
doutrinárias bastante marcadas entre algumas das muitas denominações
do segmento evangélico, esse déficit qualitativo mencionado acima
parece ser um problema generalizado, atingindo quase que
indistintamente o cotidiano das igrejas evangélicas brasileiras. Na
raiz dessa generalização que caracteriza negativamente o meio
evangélico, estariam a flexibilização da identidade religiosa na
sociedade contemporânea e a difusão, em larga escala, da ideologia
neopentecostal através da mídia televisiva.
É
inegável que a identidade religiosa dos evangélicos, outrora bem
definida e estável, tornou-se agora fragmentada, variável e, por
vezes, contraditória, favorecendo o aparecimento de um movimentado
trânsito religioso entre as denominações evangélicas ou, ao
menos, a mistura de práticas litúrgicas e doutrinárias de
denominações diferentes. Por outro lado, amparando-se nessa maior
flexibilidade identitária das igrejas evangélicas brasileiras e no
poder de influência da abrangente mídia televisiva, a ideologia
neopentecostal, à qual se filiam 60% dos evangélicos atualmente,
tem se propagado com uma rapidez tamanha e com uma eficiência tal
que acabou se inserindo até em igrejas que ainda se consideram
tradicionais, como a batista e a presbiteriana, modificando
significativamente o perfil dos membros e a postura da liderança no
que tange à vivência religiosa e às práticas sociais. A partir
dessas constatações, urge refletirmos sobre alguns conceitos que,
em virtude da superexposição à ideologia neopentecostal através
da mídia televisiva, têm se inserido nas igrejas consideradas
tradicionais (ou históricas), minando-lhes a possibilidade de uma
vivência religiosa saudável e de uma prática social condizente com
os ensinamentos de Jesus.
Com
a avassaladora disseminação da ideologia neopentecostal no meio
evangélico em geral, até mesmo as igrejas que não se filiam a essa
linha de pensamento teológico acabaram absorvendo alguns conceitos
comuns ao neopentecostalismo. O primeiro deles consiste na ideia de
que Deus, por ser misericordioso e abençoador, seria um mero
realizador dos desejos daqueles que se aproximam dele com fé e que
contribuem financeiramente na igreja, transformando, inevitavelmente,
a relação dos crentes com Deus numa relação de barganha. Embora
essa maneira de se relacionar com Deus atinja os fiéis das igrejas
consideradas tradicionais de forma mais branda, é possível
perceber, por meio dos cânticos e das orações feitas nos cultos,
uma tendência à aceitação dessa relação baseada na troca de
favores como algo normal. Isso faz com que muitos evangélicos que
não são declaradamente neopentecostais acabem igualmente reduzindo
sua vivência religiosa à busca de bênçãos materiais e de
conquistas socioeconômicas, não encontrando, na relação com Deus
e com os irmãos, a motivação necessária para se tornarem seres
humanos melhores em meio a essa sociedade de valores apodrecidos.
O
segundo conceito oriundo da ideologia neopentecostal que tem ganhado
força nas igrejas tradicionais consiste na ideia de que a igreja,
enquanto instituição social, seria vista tão somente como uma casa
de eventos, para a qual os muitos espectadores se dirigem no intuito
de assistir ao espetáculo do ritual religioso e, depois de algumas
horas, voltar para suas casas sem estabelecer nenhuma espécie de
vínculo com quem quer que seja. À semelhança do que ocorre nas
igrejas neopentecostais, a forma de pensar o ambiente eclesiástico
de muitas igrejas tradicionais não tem propiciado o desenvolvimento
de relações interpessoais saudáveis e de ações práticas que
contribuam para transformar a realidade social na qual tais igrejas
estão inseridas, reproduzindo uma vivência religiosa
individualista e egocêntrica, em que cada um pensa apenas em
“receber sua bênção”. Vale lembrar que essa concepção de
igreja, apesar de ser a predominante no meio evangélico atualmente,
nada tem a ver com a proposta de comunhão e partilha trazida pelo
evangelho de Jesus, na qual a igreja seria uma comunidade em que as
pessoas mantêm fortes vínculos de amizade, numa clara relação de
envolvimento com os dilemas enfrentados pelos que comungam da mesma
fé, para que, ajudando primeiramente umas às outras, fortaleçam-se
na missão de serem elementos de transformação da realidade social
ao seu redor.
Outro
conceito oriundo da ideologia neopentecostal que vem influenciando
cada vez mais as igrejas tradicionais é ideia de culto como
espetáculo, a partir da qual a liturgia não tem mais a função de
conduzir os indivíduos à reflexão e à tomada de uma decisão que
transforme suas vidas, mas de seduzi-los por meio do apelo emocional
trazido pelas músicas dos mais famosos cantores do meio gospel,
pelas longas ministrações enfatizando bênçãos e conquistas,
pelas curas e milagres que demonstram um suposto “poder espiritual”
e pelos motivadores testemunhos de ascensão financeira instantânea.
No caso das igrejas tradicionais, resguardadas as devidas proporções,
essa ideia da espetacularização do culto tem provocado algumas
mudanças significativas na liturgia, a fim de torná-la mais
dinâmica e atrativa para os fiéis, sob o pretexto de um “avivamento
espiritual” que parece estar mais interessado na quantidade de
pessoas do que na qualidade do culto prestado a Deus. Por conta
disso, igrejas que ficaram conhecidas, ao longo da história, por se
preocuparem com uma liturgia que apresentasse cânticos e pregações
coerentes com os ensinamentos bíblicos estão reproduzindo
verdadeiras heresias ligadas à ideologia neopentecostal por meio das
músicas evangélicas da atualidade e dos sermões inspirados nos
pregadores da mídia televisiva.
Se
o culto tem sido erroneamente considerado um espetáculo, a ideologia
neopentecostal alterou também a concepção da função pastoral,
transformando o líder eclesiástico num verdadeiro pop-star
venerado
pelas multidões, assoberbado pela participação constante em
megaeventos e tomado por uma agenda de tarefas que o impede de se
envolver com a vida cotidiana das ovelhas e se dedicar ao cuidado
delas. Embora isso aconteça com maior frequência em igrejas
neopentecostais, muitas são as igrejas tradicionais que sofrem os
efeitos devastadores (ainda que nem sempre percebidos pelos membros)
da falta de um pastoreio efetivo em virtude dessa concepção
equivocada da função do líder eclesiástico. Cada dia mais é
possível encontrar pastores de igrejas tradicionais que, seguindo os
moldes neopentecostais, ocupam seu tempo com outras tantas
atividades, a ponto de não ter tempo algum, mesmo em igrejas
relativamente pequenas, de visitar os membros que estão enfermos, de
aconselhar alguém que precise de ajuda ou de cuidar amorosamente das
ovelhas desgarradas.
Uma
última, mas não menos nociva, influência da ideologia
neopentecostal em igrejas tradicionais diz respeito à forma como os
fiéis têm sido orientados a conceberem a vida cristã e, por
conseguinte, o papel social que devem desempenhar como discípulos de
Jesus. Para o neopentecostalismo, a vida cristã se resume à mera
prática de uma religiosidade templária incapaz de ocasionar
mudanças profundas na forma de pensar e agir das pessoas em seu
cotidiano e de contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade
mais justa, restringindo o papel social do crente ao cumprimento das
“obrigações” religiosas na igreja e à propagação quase
sempre proselitista desse evangelho religioso. Dentro da concepção
neopentecostal do papel social do cristão, tem ganhado cada vez mais
força a enganosa ideia de que o reino de Deus pode ser instaurado
por meio da política-partidária e, por isso mesmo, crente deve
obrigatoriamente votar em crente, fazendo das igrejas verdadeiros
“currais eleitorais” e tornando alguns líderes religiosos
interesseiros ainda mais poderosos. Influenciados pelo
neopentecostalismo midiático, muitas igrejas tradicionais têm
conduzido seus membros a uma vivência cristã limitada à frequência
nos cultos e à busca de uma espiritualidade que não propicia a
prática da justiça social, de comportamentos éticos por parte dos
crentes e de ações misericordiosas em favor dos mais necessitados.
Essas
inequívocas constatações acerca da forte influência da ideologia
neopentecostal em igrejas consideradas tradicionais precisam nos
remeter à inquietante pergunta expressa no título deste texto,
reconhecendo que, embora possamos apresentar respostas distintas a
depender das nossas convicções, é inegável que a forma como
muitas igrejas não filiadas ao neopentecostalismo têm se
posicionado atualmente pouco as difere das igrejas declaradamente
neopentecostais. Não é à toa que as práticas nada convencionais
e, por vezes, reprováveis do neopentecostalismo brasileiro, antes
criticadas por pastores e líderes de igrejas tradicionais, agora se
proliferam no meio evangélico com uma velocidade assustadora, sendo
defendidas com inflamada veemência até mesmo pelos críticos de
outrora. Diante desse cenário perturbador, o certo mesmo é que,
enquanto damos lugar ao modismo religioso ditado pela ideologia
neopentecostal, acabamos nos afastando cada vez mais da essência
do verdadeiro Evangelho de Cristo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BERGER,
Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de
sentido.
Petrópolis: Vozes, 2004.
CUNHA,
Magali do Nascimento. A explosão gospel:
um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no
Brasil. Rio de Janeiro: Mauad e Instituto Mysterium, 2007.
ELIAS,
Norbert. Envolvimento e distanciamento:
estudos sobre sociologia do conhecimento. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1997.
MARIANO,
Ricardo. Neopentecostais:
sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 2 ed. São Paulo:
Loyola, 2005.
MARIANO,
Ricardo. Os neopentecostais e a Teologia da Prosperidade. Novos
Estudos, n. 44, p. 24-44,
Mar/1996.
MEZZOMO,
Frank Antonio. Nós e os Outros: Proselitismo e Intolerância
Religiosa nas Igrejas Neopentecostais. Revista
Fênix, v. 5, p. 01-25,
2008.
PAEGLE,
Eduardo Guilherme de Moura. O culto como show entre os evangélicos
brasileiros. Anais
do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética,
Fortaleza: ANPUH, 2009. CD-ROM.
PARAVIDINI,
João Luiz Leitão; GONCALVES, Márcio Antônio. Neopentecostalismo:
desamparo e condição masoquista.
Revista Mal-Estar e Subjetividade,
v. 9, n. 4, p. 1173-1202, Dez/2009.
SAQUETTO,
Diemerson. A invenção do pastor político:
imaginários de poder político
construídos a partir da história
das bancadas evangélicas. Dissertação de Mestrado, Universidade
Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.
SILVEIRA,
José Roberto. Pastores em crise: os efeitos da secularização e do
neopentecostalismo sobre o
clero protestante. Revista Âncora,
v. 1, n. 1, p. 106-127, Mai/2006.
WREGE,
Rachel Silveira. As Igrejas Neopentecostais:
educação e doutrinação. Tese de Doutorado,
Universidade
Estadual
de
Campinas,
Campinas,
2001.
É com grande pesar que reconheço nesta reflexão, uma perfeita análise da atual situação de nossas igrejas. Oremos para que haja mudanças.
ResponderExcluirQuer curas? Vá na Universal, quer prosperidade? Vá na Universal, Quer salvação? Vá na Universal.
ResponderExcluirA única três em um.