quarta-feira, 3 de julho de 2013

SOMOS TODOS NEOPENTECOSTAIS?


Por Jurgen Souza

As estatísticas do IBGE apontam, desde as últimas décadas do século XX, para um vertiginoso crescimento do percentual de brasileiros que se dizem evangélicos. Em 1980, os evangélicos representavam apenas 6,6% da população; em 1991, eles eram 9% da população; em 2000, esse percentual saltou para 15,4% da população; e em 2010, uma parcela de 22,2% da população brasileira já se declarava evangélica. Todavia, ainda que os evangélicos tenham mesmo crescido quantitativamente, essa explosão gospel parece não ter atingido qualitativamente, salvo raríssimas exceções, a sociedade brasileira ou mesmo a vida diária da maioria dos fiéis que lotam as igrejas evangélicas país afora, favorecendo, assim, a proliferação de práticas sociais e de vivências religiosas que em nada lembram os ensinamentos de Jesus. O mais assustador, porém, é que, embora existam diferenças doutrinárias bastante marcadas entre algumas das muitas denominações do segmento evangélico, esse déficit qualitativo mencionado acima parece ser um problema generalizado, atingindo quase que indistintamente o cotidiano das igrejas evangélicas brasileiras. Na raiz dessa generalização que caracteriza negativamente o meio evangélico, estariam a flexibilização da identidade religiosa na sociedade contemporânea e a difusão, em larga escala, da ideologia neopentecostal através da mídia televisiva.
É inegável que a identidade religiosa dos evangélicos, outrora bem definida e estável, tornou-se agora fragmentada, variável e, por vezes, contraditória, favorecendo o aparecimento de um movimentado trânsito religioso entre as denominações evangélicas ou, ao menos, a mistura de práticas litúrgicas e doutrinárias de denominações diferentes. Por outro lado, amparando-se nessa maior flexibilidade identitária das igrejas evangélicas brasileiras e no poder de influência da abrangente mídia televisiva, a ideologia neopentecostal, à qual se filiam 60% dos evangélicos atualmente, tem se propagado com uma rapidez tamanha e com uma eficiência tal que acabou se inserindo até em igrejas que ainda se consideram tradicionais, como a batista e a presbiteriana, modificando significativamente o perfil dos membros e a postura da liderança no que tange à vivência religiosa e às práticas sociais. A partir dessas constatações, urge refletirmos sobre alguns conceitos que, em virtude da superexposição à ideologia neopentecostal através da mídia televisiva, têm se inserido nas igrejas consideradas tradicionais (ou históricas), minando-lhes a possibilidade de uma vivência religiosa saudável e de uma prática social condizente com os ensinamentos de Jesus.
Com a avassaladora disseminação da ideologia neopentecostal no meio evangélico em geral, até mesmo as igrejas que não se filiam a essa linha de pensamento teológico acabaram absorvendo alguns conceitos comuns ao neopentecostalismo. O primeiro deles consiste na ideia de que Deus, por ser misericordioso e abençoador, seria um mero realizador dos desejos daqueles que se aproximam dele com fé e que contribuem financeiramente na igreja, transformando, inevitavelmente, a relação dos crentes com Deus numa relação de barganha. Embora essa maneira de se relacionar com Deus atinja os fiéis das igrejas consideradas tradicionais de forma mais branda, é possível perceber, por meio dos cânticos e das orações feitas nos cultos, uma tendência à aceitação dessa relação baseada na troca de favores como algo normal. Isso faz com que muitos evangélicos que não são declaradamente neopentecostais acabem igualmente reduzindo sua vivência religiosa à busca de bênçãos materiais e de conquistas socioeconômicas, não encontrando, na relação com Deus e com os irmãos, a motivação necessária para se tornarem seres humanos melhores em meio a essa sociedade de valores apodrecidos.
O segundo conceito oriundo da ideologia neopentecostal que tem ganhado força nas igrejas tradicionais consiste na ideia de que a igreja, enquanto instituição social, seria vista tão somente como uma casa de eventos, para a qual os muitos espectadores se dirigem no intuito de assistir ao espetáculo do ritual religioso e, depois de algumas horas, voltar para suas casas sem estabelecer nenhuma espécie de vínculo com quem quer que seja. À semelhança do que ocorre nas igrejas neopentecostais, a forma de pensar o ambiente eclesiástico de muitas igrejas tradicionais não tem propiciado o desenvolvimento de relações interpessoais saudáveis e de ações práticas que contribuam para transformar a realidade social na qual tais igrejas estão inseridas, reproduzindo uma vivência religiosa individualista e egocêntrica, em que cada um pensa apenas em “receber sua bênção”. Vale lembrar que essa concepção de igreja, apesar de ser a predominante no meio evangélico atualmente, nada tem a ver com a proposta de comunhão e partilha trazida pelo evangelho de Jesus, na qual a igreja seria uma comunidade em que as pessoas mantêm fortes vínculos de amizade, numa clara relação de envolvimento com os dilemas enfrentados pelos que comungam da mesma fé, para que, ajudando primeiramente umas às outras, fortaleçam-se na missão de serem elementos de transformação da realidade social ao seu redor.
Outro conceito oriundo da ideologia neopentecostal que vem influenciando cada vez mais as igrejas tradicionais é ideia de culto como espetáculo, a partir da qual a liturgia não tem mais a função de conduzir os indivíduos à reflexão e à tomada de uma decisão que transforme suas vidas, mas de seduzi-los por meio do apelo emocional trazido pelas músicas dos mais famosos cantores do meio gospel, pelas longas ministrações enfatizando bênçãos e conquistas, pelas curas e milagres que demonstram um suposto “poder espiritual” e pelos motivadores testemunhos de ascensão financeira instantânea. No caso das igrejas tradicionais, resguardadas as devidas proporções, essa ideia da espetacularização do culto tem provocado algumas mudanças significativas na liturgia, a fim de torná-la mais dinâmica e atrativa para os fiéis, sob o pretexto de um “avivamento espiritual” que parece estar mais interessado na quantidade de pessoas do que na qualidade do culto prestado a Deus. Por conta disso, igrejas que ficaram conhecidas, ao longo da história, por se preocuparem com uma liturgia que apresentasse cânticos e pregações coerentes com os ensinamentos bíblicos estão reproduzindo verdadeiras heresias ligadas à ideologia neopentecostal por meio das músicas evangélicas da atualidade e dos sermões inspirados nos pregadores da mídia televisiva.
Se o culto tem sido erroneamente considerado um espetáculo, a ideologia neopentecostal alterou também a concepção da função pastoral, transformando o líder eclesiástico num verdadeiro pop-star venerado pelas multidões, assoberbado pela participação constante em megaeventos e tomado por uma agenda de tarefas que o impede de se envolver com a vida cotidiana das ovelhas e se dedicar ao cuidado delas. Embora isso aconteça com maior frequência em igrejas neopentecostais, muitas são as igrejas tradicionais que sofrem os efeitos devastadores (ainda que nem sempre percebidos pelos membros) da falta de um pastoreio efetivo em virtude dessa concepção equivocada da função do líder eclesiástico. Cada dia mais é possível encontrar pastores de igrejas tradicionais que, seguindo os moldes neopentecostais, ocupam seu tempo com outras tantas atividades, a ponto de não ter tempo algum, mesmo em igrejas relativamente pequenas, de visitar os membros que estão enfermos, de aconselhar alguém que precise de ajuda ou de cuidar amorosamente das ovelhas desgarradas.
Uma última, mas não menos nociva, influência da ideologia neopentecostal em igrejas tradicionais diz respeito à forma como os fiéis têm sido orientados a conceberem a vida cristã e, por conseguinte, o papel social que devem desempenhar como discípulos de Jesus. Para o neopentecostalismo, a vida cristã se resume à mera prática de uma religiosidade templária incapaz de ocasionar mudanças profundas na forma de pensar e agir das pessoas em seu cotidiano e de contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa, restringindo o papel social do crente ao cumprimento das “obrigações” religiosas na igreja e à propagação quase sempre proselitista desse evangelho religioso. Dentro da concepção neopentecostal do papel social do cristão, tem ganhado cada vez mais força a enganosa ideia de que o reino de Deus pode ser instaurado por meio da política-partidária e, por isso mesmo, crente deve obrigatoriamente votar em crente, fazendo das igrejas verdadeiros “currais eleitorais” e tornando alguns líderes religiosos interesseiros ainda mais poderosos. Influenciados pelo neopentecostalismo midiático, muitas igrejas tradicionais têm conduzido seus membros a uma vivência cristã limitada à frequência nos cultos e à busca de uma espiritualidade que não propicia a prática da justiça social, de comportamentos éticos por parte dos crentes e de ações misericordiosas em favor dos mais necessitados.
      Essas inequívocas constatações acerca da forte influência da ideologia neopentecostal em igrejas consideradas tradicionais precisam nos remeter à inquietante pergunta expressa no título deste texto, reconhecendo que, embora possamos apresentar respostas distintas a depender das nossas convicções, é inegável que a forma como muitas igrejas não filiadas ao neopentecostalismo têm se posicionado atualmente pouco as difere das igrejas declaradamente neopentecostais. Não é à toa que as práticas nada convencionais e, por vezes, reprováveis do neopentecostalismo brasileiro, antes criticadas por pastores e líderes de igrejas tradicionais, agora se proliferam no meio evangélico com uma velocidade assustadora, sendo defendidas com inflamada veemência até mesmo pelos críticos de outrora. Diante desse cenário perturbador, o certo mesmo é que, enquanto damos lugar ao modismo religioso ditado pela ideologia neopentecostal, acabamos nos afastando cada vez mais da essência do verdadeiro Evangelho de Cristo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2 comentários:

  1. É com grande pesar que reconheço nesta reflexão, uma perfeita análise da atual situação de nossas igrejas. Oremos para que haja mudanças.

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  2. Quer curas? Vá na Universal, quer prosperidade? Vá na Universal, Quer salvação? Vá na Universal.
    A única três em um.

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